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quinta-feira, 23 de abril de 2009

Um encontro de dois tempos

por Pudim

Era quase Páscoa. Indiferente a isso, Eduardo Cícero evitava qualquer contato social que excedesse as singulares flores do canteirinho de seu tímido quintal. Estava profundamente convencido de que encontrava-se velho demais para agitação, e aquilo era aproveitar a velhice. Não era sem motivo. A vila de Tento, naquela época ainda aspirante a cidade, no máximo oferecia conversas limitadíssimas no único botequim - ainda assim, improvisado -, situado no mórbido centro. E, como típico inventor de obstáculos, o chamado Velho Duci recusava quaisquer sortes de interações com "sujeitos daquela estirpe".
Longe daquele retrocesso da civilização, na urbana e cosmopolita atividade da capital, três indivíduos (um deles incialmente estranho aos demais) estavam prestes a se tornar companheiros de viagem. Tenório e Cecília, recém-célebres no Condado de Stompes, eram os cabeças da caterva. Há tempos a nobreza fora gradativamente ignorada e eventualmente abolida, mas eles ainda eram conhecidos como Conde e Condessa. O terceiro ainda era um desconhecido.
Mais notavelmente, o Alguém se entretinha brincando com anagramas, fingindo-se inconsciente de que manipulava pela raiz o destino de nobres, velhos e desconhecidos pelo mundo. Ansiava pelo repouso que se aproximava. Isto em consideração, dispunha tão harmoniosamente quanto possível as peripécias de seus subordinados. Iniciava-se assim um colóquio noturno inusitado, convergindo inevitavelmente para "um encontro de dois tempos".

Nos tempos de Duci, o mentor

O velho pacato já fora um jovem pachola. Em tempos antigos, cria sinceramente em ser ele mesmo o Escolhido para alguma missão fora de seu conhecimento, mas que iria Mudar O Mundo. Convenientemente, isso foi ao mesmo tempo a causa e o consolo por vários amigos o abandonarem.
Atendo-se a esse sonho foi que descobriu algo, de fato, relevante e real. Aconteceu na biblioteca de sua faculdade, para ele o lugar habitual de seus passeios ociosos. Apropriadamente, encontrava-se descartado por acaso o "Diário de um Esquisito", com desenhos elaborados na capa, em uma das estantes. Ao primeiro vislumbre de seu rico conteúdo, Duci entendeu que aquele era o recado do Destino ao gênio reprimido. Resquícios de histórias quase de todo irrecuperáveis ou extraviadas, perpetuadas em forma de poesia naquele volume, o fizeram compreender que estava fadado a encontrar o produto de uma grande carreira de roubos séculos antes: um tesouro de mudar a História.
Não notando que o que segurava era, de verdade, um diário, o Escolhido começou a exteriorizar sua empolgação. O vexame por uma boa causa durou até o verdadeiro dono reclamar sua propriedade. Após caloroso litígio, Cícero concordou em retornar o seu achado.
A descoberta, no entanto, permaneceu em sua memória. E, por muitos anos, o fez entulhar documentos e possíveis desenvolvimentos para seus planos de ação sobre sua escrivaninha. Talvez por isso sua projeção elevada na carreira seja explicada; talvez por isso seja inexplicável. O fato é que Duci manteve-se lutando para que suas posses pudessem sustentar seus meios. Até o dia em que, subitamente, encontrou prazer na observação e análise de flores domésticas.

Sinto dor em dente, o cuspo em...

A estação estava apinhada; o trem, vazio. Não houve sequer funcionários prontos a carregarem suas malas para o devido compartimento. Fazia sentido: a Estação do Rancho era um destino muito inusitado e pouco requisitado. Cecília o notou e se deu conta de que sua aventura poderia erguer rumores.
"Sem pânico", Tenório a acalmou, "essas celebridades de jornal não duram uma semana. Ninguém mais deve ser capaz de reconhecer nossos rostos."
Tenório estava certo, teoricamente, embora ambos fossem donos de belos e marcantes frontispícios.
Eles não enxergavam o cobrador, que deduziam ser também o maquinista, e se perguntavam se deveriam pagar logo o bilhete. Então foram interrompidos. Um grito indistinto veio de algum ser próximo à plataforma de embarque. Após isso, o casal conseguiu lobrigar um objeto caindo, muito obliquamente, em algum canto escondido dentro do trem. A seguir, veio seu dono perseguindo-o.
"Meu dente! Eu derrubei meu dente de ouro! Onde foi parar? Vocês viram onde foi parar?"
"Não pude ver, foi por ali", respondeu o Conde, apontando algum canto escondido dentro do trem.
Ele e sua esposa não deram mais importância ao fato, até que o trem partiu. Nesse momento,Tenório olhou intrigado para o fundo do trem, que o desconhecido escrutava freneticamente. Este aguardou que o outro virasse sua face novamente à cabine do maquinista, e colocou de volta no bolso a moeda que tinha atirado ali, desejando que o tiro não tivesse sido perceptivelmente oblíquo. Então se levantou, e pôs-se a gritar:
"Pare o trem! Pare! Eu entrei por engano! Eu nem sei para onde esse trem vai!" pedido que, obviamente, não foi atendido. O casal tentou apaziguá-lo, oferecendo-o ajuda e informações. Ele optou por aceitar prontamente, já que era precisamente o que queria, e seu escândalo não estava sendo muito bem interpretado. Seguiram-se seis horas de um entediante e desconfortável sacolejo durante as quais o maquinista continuou sendo uma lenda. Apenas no final da jornada um balconista da própria Estação cobrou as passagens, e assim confirmou-se que aquele era um lugar insólito.
"Vocês têm lugar para ficar aqui?" o desconhecido perguntou, já sequer preocupando-se em soar desesperado.
"Temos", respondeu Tenório, farto de perguntas e notando que ganhara um execrável companheiro de viagem.
"Podem me mostrar onde é?"
O Conde aquiesceu.

Cem por um nos dois de Tento

Pouco do que aconteceu desde a chegada do trio metropolitano ao Rancho de Tento é passível de menção. Era tudo cochichos, boas-vindas, botequim lotado, perguntas e mais perguntas: reações óbvias ao choque entre a gota volátil de chuva e a lagoa perene acostumada à calmaria. Pois então, no quinto dia após a Páscoa, o desconhecido observava quadros de gosto duvidoso, geometricamente dispostos na parede próximo ao seu quarto de hóspede. Notava que no mesmo horário, noite após noite, habituou-se a fazê-lo. E, embora isso o impacientasse, continuava recusando entrar em seu quarto e dormir mais cedo ou se render às festas. Até que, nesse dia, Tenório, Cecília e o dono da hospedaria se trancaram sozinhos no recinto do último.
O hóspede solitário sequer pensou em tentar ouvir a conversa: já tinha o ouvido colado à porta antes que o fizesse. Só ouvia vozes masculinas.
"Cem por um."
"Nos dois?"
"Nos de Tento."

Um tiro no Conde de Stompes

Milhares de faíscas refulgentes a poucos sentímentros do hóspede inesperado. Após elas, A Condessa, em um redingote vermelho, repousa serena próximo a um lago remansoso. Tudo ao redor é tormenta. Ela se levanta para recebê-lo, mas o fosso caótico parece intransponível. A desordem que a cerca, ameias despovoadas que a resguardavam, tudo homogeneiza-se num torvelinho, que se condensa na figura bem vestida do Conde. Este ergue uma Wessel antiga, e sem pestanejar atira no visitante. Mas quem morre é o atirador. Por trás da ruína do Conde, a donzela de vestes rubras segura outra Wessel antiga, esta com fumaça se dissipando acima do cano. Não há mais guardas no arrebalde; a cidade é só deles.

Todos nós de pé: um cornetim

O dobre soou duas vezes na mesma semana; e a empolgação da cidade arrefeceu. Não pelo velho misterioso que desaparecia de suas vidas, ou pelo retirante carismático que cometeu suicídio enquanto ali pousava, mas por tudo isso acontecer justamente na agourenta semana seguinte à Páscoa. Sistematicamente a cada ano, nessa época, o velho Duci fazia ressoar em sua trompa francesa a marcha fúnebre em homenagem a algum velho habitante da cidade que falecia. Agora era a vez dele. A Condessa estava de preto; o Alguém fitava obliquamente seu chapéu de luto. Todos se aprumaram para a melodia lúgubre. Soou o cornetim do músico substituto.

Soou a campainha do trem que os levava de volta à turba.

Não há mais guardas no arrebalde; o tesouro é só deles.

Foto: Guilherme Carnaúba

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Anti-Humor [17]

por Rodrigo Faustini

Restaurante Conceitual

...eu sei que eu pedi pra ser amordaçado, mas eu também pedi que tal manobra fosse realizada com cetim, sua vaca velha.
É o início de outro mês e, portanto, lá vêm mais uma edição da minha semanal (não, não é com você querida, continua esfregando) resenha culinária. Para esta quinzena, fui convidado ao novo restaurante “Régugiter”, uma espécie de resposta psico-punk ao fast food, cujos chefs são, na verdade, artistas que estão sem outra fonte de renda. Muitos podem considerar tais ideais com qual o restaurante é gerenciado um tanto pretensiosos (afinal, o lema é “Com comida fazemos arte; já você, merda) e por isso, me senti compelido a me alimentar num restaurante de alta classe como caridade à Verdade, agindo como um mensageiro, porém com minha boca, mãos e palavras.
Cheguei lá para meu almoço de quarta-feira, aproveitando a promoção da “Dignidade”. Evitando os clichês, além de toda aquela breguice dos restaurantes temáticos, foi agradável notar que a escolha de decoração do espaço para o restaurante foi um simples vazio adimensional cor de marfim, o que, aliás, deve economizar uma fortuna em frivolidades como objetos, manutenção, matéria e imposto de renda para o dono (embora os custos de implementação e sustentação atmosférica devem triplicar).
Como já havia aguçado meu apetite com uma compulsão incessante por metanfetaminas, parti para minha sagrada glutonaria.

1º Prato: A garçonete vinha graciosamente em minha direção, e, profissionalismo à parte, devo admitir que ela era tão gostosa que faria Elton John dizer “Adeus à estrada dos Tijolos Amarelos” e voltar a ser “O mago do pinball” se você entende o quê eu quero dizer. Querendo mostrar que tinha feito minha pesquisa sobre o restaurante para impressioná-la, pedi um prato em aleatório, falando apenas seu número, como um profissional:
“Olá, mulher. Eu gostaria do nº 44, por favor.”
“Ok, um 44 saindo.
...Sem querer ser rude, mas você está com uma sujeirinha debaixo do nariz.”
“É uma pinta.”
“Ai, desculpa senhorzinho, desculpa mesmo.”
“Tudo bem, todo mundo sempre se confunde assim”
“Também, né...Então, você quer uma porção de ‘Frustração Sexual’. Algo para beber?”
“...
...Água.
...Gelada.”
O serviço foi tão bom que pareceu que havia recebido meu pedido exatamente logo após de requisitá-lo, embora a água gelada tivesse deixado algo a desejar.


palavradomal""""...........""Minha Frustração Sexual"
Como se pode notar, a composição do prato é bem engenhosa, deixando ao cliente a possibilidade de lidar com sua “Frustração Sexual” com apenas o uso de uma mão. O aperitivo se mostra perfeito para ser comido no sofá de madrugada ou até no trabalho. Um de seus defeitos é que, logo que sua presença foi notada, logo quis me livrar dele, com tal dedicação que fez com que algumas das mulheres presentes no restaurante ficassem me encarando. O consumo me deixou com um paladar restante amargurado e intenções de pescar em meu tempo de folga, considerar o uso de uma peruca, tingir a minha barba, reclamar do governo, me candidatar politicamente, e assistir à luta livre na tv paga.
2º Prato: Pouco tempo depois, a garçonete voltou com a 2ª entrada, “Cobiça reprimida”, o que foi curioso, pois não havia pedido nada, algo que fiz questão de notar em voz alta. Ela retrucou que não só eu havia feito isso, como havia importunado todos os outros garçons para que estes apressassem os cozinheiros. Eu neguei novamente, adicionando que ela sofria de distúrbios “desilusionais” e devia procurar suporte acadêmico, embora não me importasse mais se ela deixasse lá o prato, pois o erro já havia sido cometido e me estufar com todo aquela “Frustração Sexual” havia ironicamente me deixado louco para comer qualquer coisa que aparecesse a minha frente.
Enquanto degustava, recordei sobre quanto tempo havia passado desde que experimentara tal sensação. Minha vó sempre me fornecia novas levas de “Cobiça reprimida” sempre que ia visitá-la. Ela costumava usar vestidos de cetim. Foi então que me lembrei como eu odiava tal aperitivo, com toda sua crocância folhada, textura diversificada, fragrância suave, cremosidade fresca e maciez amanteigada características. Ela também usava meias finas de cetim que iam até a metade de suas coxas. Ora, eu teria deixado mais da metade sobrando, se não fosse um golpe da consciência que me fez pensar na abundância e nos menos afortunados, e por isso acabei por deglutir o resto, até fingindo um sorriso no rosto para os que observavam, finalizando tudo ao abrir um botão da calça e soltar um pequeno arroto de completo desgosto.
3º Prato: Agora era a hora de me fazer um agrado: busquei no menu a mais cara e mais chique especiaria da casa, que acabava por coincidir com o especial do mês, sob o título de “Disapointment”. O exótico nome, que para mim a mais ousada combinação de letras e sons que já vi na minha vida, já me fez salivar. Que divindades gustativas me esperavam? Oh, um dilúvio se iniciava em minha boca, com impaciente espera! A descrição continha todas as palavras que um homem bem agluteado poderia esperar: “gourmet”, “recozido”, “ao Sol”, “reserva”, “estoque pessoal”, “98%”, “instantaneamente”, “caucasiano”, “flambé”, “clandestino” e até “aborígene”!
Para falar a verdade, ainda estou esperando prato enquanto escrevo isso no meu laptop. Minha saliva já encheu novamente o meu copo e acabei de notar a excelente acústica do meu estômago.Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Oh! Será que é? Sim! Sim! Sim! Sim! Sim! Sim! Sim! Sim! Lá vêm minha porção de “Dissapointment” naquela travessa encoberta com uma tampa. Oh! Oh! Oh! Hora de gradativamente levantar essa tampa que esconde o pináculo da culinária chique e espiar a dádiva que me espera!


... ... ... ... ...Vão se foder todos, a língua inglesa, enzimas e o conceito de empolgação.
Qual o problema? Só porque eu vou ser amordaçado não quer dizer eu não quero me sentir confortável.

terça-feira, 14 de abril de 2009

Sonata norturna [11]

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Depois do fim (11/10)


Por Pudim (e Tuma)
Foto: Tuma

Mas há ainda luz. O último suspiro do mundo, um estertor, um gorgolejo, encerrando três vidas na noite que passou, uma ainda mal começada, a contentora, talvez, da salvação do mundo. Mas há ainda há luz. A violência das criaturas pálidas, sua fúria percorrendo a Ilha da Madeira e todos os outros lugares ainda intocados pela palidez recrudescente. Mas ainda há luz. Em todo o mundo, novos infectados pelo mal desconhecido, juntando-se às hostes brancas e tomando parte na destruição. Mas ainda há luz. Sim, pois após a noite do fim do mundo, após o suspiro que acabou com ele, após a última sonata ser tocada e brutalmente interrompida, após a madrugada perder-se na escuridão, nasce novamente o sol. Sobre todas as criaturas, as pálidas e as vivas, ele lança sua luz. Todos os seres, sem exceção, erguem seus olhos, como que surpresos de que após tamanho mergulho nas trevas pudesse ascender novamente a chama sempiterna. Não, após o fim do mundo ainda há vida. Após o fim do mundo ainda há luz. Não se sabe quanto tempo as criaturas pálidas irão durar, em seu frenesi apocalíptico. Mas já se lembra, aquele que viveu antes do fim, de como elas se esvaíam, cedo ou tarde. Eles levantam os olhos, os seres da terra. O sol ilumina a todos. As marcas da destruição impedem que eles pensem ter se tratado de um pesadelo. Mas a terra fornecerá o suficiente, mais uma vez, para que seus filhos permaneçam em sua dança.

UM NOVO COMEÇO?
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domingo, 12 de abril de 2009

Anti-Humor [16]

nãoéumapiadaEvil Spock Warning: Módulos intensos de humor negro a seguir. Seja cauteloso na sua interpretação, pois seus preconceitos podem acabar por criar um crescimento infeccioso de barbicha ao redor da área propriamente demarcada no seu rosto.

por Rodrigo Faustini (ainda)
Guerras que Estão Prontas Para Acontecer

A temida e prevista (embora não na época mais conveniente) crise econômica está começando a mostrar seus dentes. O dólar aumenta, as bolsas começam sua histeria, o povo se amedronta, animais domésticos sucumbem ao tabagismo, crianças do futuro choram pelo presente tenebroso das crianças atuais que então serão seus depressivos e ausentes pais, sonhos em que eu sou o homem que engole fogo do Cirque Du Soleil, com um sorriso estampado no rosto, fazem-me questionar o quanto eu realmente amo minha família. Porém, uma esperança encontra-se no horizonte, como um trem à distância, vindo a nosso encontro em surpreendente antiquada velocidade, enquanto uma rara espécie de guaxinim tenta atravessar os trilhos, numa quarta-feira. Pois aquele trem somos nós, os trilhos são a linha do tempo, a quarta-feira é a Economia e o espécime de guaxinim à beira da morte aparentemente não representa nada. E os passageiros daquele trem são a nossa esperança para a melhoria dos tempos atuais: Guerra(s)!
Embora não seja o primeiro conceito que vêm a cabeça quando o assunto é prosperidade, é inegável o fato de que, junto de guerras, encontra-se o pináculo de desenvolvimento nesse período de tempo. Há muito do que se pode atribuir às guerras: celulares, satélites, joelhos, mentiras, traição, rigidez ideológica, armas, chicletes, proteção corporal, bolinhas de gude, próteses de joelho, expansão territorial, controle comercial, a palavra “invectiva”, franceses e comida enlatada.
Não deve se esquecer que o dinheiro é um recurso finito não renovável por nenhum motivo aparente, pois nós mesmos o inventemos, então a melhor casualidade das Guerras seria a melhoria da distribuição de renda, pois humanos são igualmente finitos e inversamente proporcionais à concentração do capital. Portanto, bata em seus tambores e berre o grito de guerra dos tempos modernos: Renda Per Decapita!
Seguem-se então dicas e previsões de conflitos que estão apenas esperando aquele ataquezinho terrorista implantado e conspirado para iniciarem:

I - Deficientes Físicos vs. Idosos vs. Gestantes: Esses segmentos da sociedade estão literalmente se espumando de raiva: quem consegue mais apoio do governo? Quem é atendido primeiro no caixa? Qual a porcentagem de vagas que merecem no estacionamento? Quem faz parte da instituição de apoio social mais “gangsta”?
Uma boa fatalidade de tal guerra será a dos “Falsos Piedosos”, que sofrerão derrame auricular ao tentarem escolher um lado ao mesmo tempo em que tentam ser politicamente corretos em tal decisão sobre por qual desses “infortúnios” derramarão lágrimas forçadas.
As gestantes, em termos de munição, estarão em desvantagem já que seus adversários possuem toda uma variedade de equipamentos sofisticados acoplados e também terão de lidar com obstáculos de locomoção e emoção e, muito mesmo como um personagem famoso, serão beneficiadas por uma alimentação baseada em espinafre, com todo seu ácido fólico. Já os idosos terão períodos mais limitados de ação, além de uma dificuldade geral em comunicação. Os deficientes físicos, portanto, se mostrarão os mais aptos para tal guerra, especialmente com a colaboração dos para-olímpicos. Mas tudo isso pode depender de como seus estrategistas reagirão ao solo escorregadio resultante das náuseas/ freqüência urinária/rompimento de bolsas das gestantes. A guerra também gerará um enorme número de segmentos de 8 minutos no Fantástico e reality shows na tv paga.
Os resultados gratificantes da inclusão social e revigoramento de apresentar uma função clara numa sociedade nos participantes, que normalmente os ignora, acabariam por dar uma característica otimista ao fim dessa guerra: divórcios, rejuvenescimento (mental), histórias de vô interessantes, atenção da mídia para causas dessas minorias, abortos, investimento e concessões governamentais para fim de conflitos, para citar alguns.

II- Mulheres vs Mulheres: Tal guerra, que historiadores passarão a chamar de “Sex in The City 2”, é provavelmente um dos conflitos mais aguardados desde de a comercialização do fio-dental (o outro, se você é mulher; exatamente esse que você estava imaginando, se você é MACHO), que, coincidentemente, pode ser apontado como uma das bases desse conflito, além de ser sua “estrela de Davi”.
Os grupos de combate se dividirão baseados em fatores como preferência de homens e cosméticos, posição política quanto à mulher na sociedade contemporânea; posse (ou não) de filhos; filmes com Matthew McConaughey assistidos; livros de Clarice Lispector lidos; fatos sobre Rosa Parks, Marie Curie e Margaret Tatcher conhecidos e escolha de biquíni. Mais ira e revolta surgirá quando for percebido que todas as divisões que esses fatores conjugarão serão iguais a cor e tipo de cabelo nessas mulheres, além de quão sedoso esse é.
-Vencedores: Homens fetichistas (“homens”). Essa guerra também dará nascimento a toda uma sorte de reality shows, mas esses serão transmitidos em outro tipo de canal e num horário mais tardio.

III - Minorias vs Opressores: Entrará para a História como a pior estratégia militar posta em prática já concebida.

IV - Humanos vs Objetos Inanimados: Já está em tempo da raça humana notar o número de fatalidades causadas por estes vis estáticos. Todo ano balas, pára-brisas, porretes, facas, cacos de vidro, drogas, chãos, candelabros, tijolos, cordas em nó, pedras e outros pervertidamente perversos imóveis aniquilam humanos de forma inconseqüente, inconsciente, incontinente, incoveniente, inconfidente, incongruente e inconsistente. Não é de se admirar, portanto, que um movimento de revanche se erga. Recrutamento para o combate, porém, pode se demonstrar complicado, pois qualquer fatalidade será, logicamente, parte do exército inimigo e terá sua forma corpórea destruída e seu legado manchado. O conflito colocará em questão a imotolidade num aspecto com qual este nunca foi analisado antes: se tudo é formado por átomos e estes contêm as partículas perpetuamente em moção denominadas elétrons, quem ou o quê realmente está parado e em relação a o quê (para que possamos destruí-lo)? Podemos apenas esperar que as coisas não saiam do controle de novo e a ONU acabe por ter de criar um Estado para essas moléculas que ultrapasse o sólido.

IV - Suicidas vs Masoquistas: Já se discutiu que as guerras são uma fonte infinita de manutenção do capitalismo e, portanto, o que seria mais rentável que uma guerra perpétua? Pense nisso, a máquina da violência estaria num ciclo vicioso de combatentes: por teoria, ambos os lados estariam oferecendo sua alma ou ao menos seu corpo para o conflito, sendo os soldados mais dedicados; a violência exacerbante iria gerar uma onda de sadomasoquismo o que levaria um baby boom como nenhum antes visto e justo quando o número de combatentes vivos estivesse em declínio devido ao sucesso de uma parte e o exagero na outra, tais sementes os substituiriam, pois ou virariam masoquistas como seus pais, por serem seres extremamente suscetíveis à persuasão e cercados por tal prática, ou tornar-se-iam suicidas devido a terrível paternidade a qual foram sujeitos, em saudáveis e afortunada proporção de aproximadamente 1:1, mantendo o conflito em pé até a aniquilação da, finalmente capitalmente próspera, raça humana.

V- Guerras vs. Suécia: Decisão de permanecer Neutra durante a 2ª Guerra mundial? Sério?!? Vamos ver quanto "neutros" eles tentarão se manter depois de soltarmos ácido em pó sobre Zurique e fazer todos aqueles Prêmios Nobel da paz parecerem chocolate Nestlé. Chorem no berrante o quanto quiserem, João calvino não irá voltar para salvá-los. Por sinal, vocês não vêem nada de hipócrita no fato de seu lema ser "um por todos e todos por um"?

sábado, 11 de abril de 2009

Sonata norturna [10]

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Sonata (10/10)


Por Pudim (e Tuma)
Foto: Google

1. Ela não sabia, mas em seu ventre estava a salvação da humanidade. Marcela não sabia, mas em seu ventre estava. Não sabia, mas em. Ela não. A Salvação. Marcela não sabia, ainda, pois não havia sido avisada, mas em seu ventre estava a salvação da humanidade. Passeando pelas ruas de Funchal, desligava-se do barulho de seus passos e do murmúrio dos muitos que caminhavam e conversavam cruzando as esquinas, fugindo do calor das casas e abraçando, desesperados, o ar fresco que o mar, indolente, soprava sem pressa. Ela lembrava a noite, quase nove meses atrás, em que seu futuro filhotinho se materializara. Marcela lembrava. Lembrava da noite e de cada outro dia, nove meses vezes os seus dias, em que caminhara pela rua para fugir do calor e encontrar, quem sabe, seu amante perdido. O amante perdido perdido no mar, marinheiro constante, intermitentemente presente junto a ela e ao filho deles, pequeno milagre ocasional, surgido no ventre da moça após um gesto de prazer comum, rápido, como todos os outros haviam sido.

Mas por ali, longe dela, longe de Marcela e seu filho-salvação, chegava à praia a figura espectral de Nikole, seus pulmões ardendo, os cabelos colados ao rosto, suas roupas em farrapos, cambaleando e afundando os pés na areia molhada e fofa. E seus olhos, injetados de água salgada, do mar ou de lágrimas, enrubesciam violentamente, e giravam, cruzando suas miras no ar, buscando o foco do que havia logo a um palmo, ou muitos metros seguindo em frente. Cedeu enfim, o corpo, deixando-se cair na areia e ser tocado pelas ondinhas que avançavam terra adentro. O contato com o chão, com o sólido, logo despertou nele uma sensação de pertencimento, uma lembrança, um arrepio familiar. Mas, junto com o reconhecimento, o arrepio trouxe o delírio. Nikole viu sete figuras reunidas em volta do mundo, e o mundo queimava. As chamas, porém, eram sem brilho, e só faziam afundar seu combustível na escuridão. Ao redor do mundo, no entanto, algo reluzia, e era um ventre. Ao lado de Nikole, a figura pôs as mãos sobre a barriga, e a barriga explodiu em luz, iluminando o planetinha e tirando-o das trevas. Surpresa, Nikole olhou para o rosto da figura, e a figura era uma mulher. Uma mulher grávida.

- Você está bem? – Marcela tentava, desajeitadamente, ajudar Nikole. Em seu transe, a náufraga saíra da praia e começara a andar pelas ruas da cidade, balbuciando, até encontrar, de olhos fechados, a mulher que via dentro de suas pálpebras.

- Sim! – exclamou Nikole, acordando de repente. – E você? Você está tudo bem? Está tudo bem com você...?

- Está, está sim. Mas de onde você veio? Está toda molhada... – disse Marcela, um pouco assustada.

- Eu, eu vim nadando até a praia, estava em um barco, mas as pessoas enlouqueceram e... meu Deus, eu não vou chorar. Você não viu, não sabe o que está acontecendo no mundo?

- Você fala do vírus?

- É, isso, as pessoas tomam a vacina e, meu Deus, elas enlouquecem, entende o que eu digo?

- Entendo, sim, mas por favor, acalme-se...

- Acalme-se, sim, eu não poderia estar mais calma, eu nunca estive tão calma na minha vida, meu Deus, eu consegui, você é a Salvação! – Nikole segurou o braço de Marcela, com delicadeza.
– A salvação de todos nós...

- O que você está dizendo, eu sou a salvação de quem, por quê?

- Porque... eu vi, sim, eu tive uma visão. O mundo estava mergulhado nas trevas, mas uma mulher dava à luz uma grande luz, e essa luz iluminava o mundo. E a mulher... a mulher tinha o seu rosto, a mulher era você!

- Mas como, eu não entendo, o que você está dizendo...
Nikole a interrompeu, soltando o braço de Marcela e jogando-se de joelhos na frente dela, abrindo os braços para implorar e depois juntando as mãos num gesto de súplica e oração. Seus olhos vermelhos se encheram de lágrimas.

- Por favor, só peço que acredite em mim. Eu não sei como isso aconteceu, nem porque, mas eu sei que a salvação da humanidade está em você, e você precisa vir comigo. – Marcela olhou a mulher ajoelhada, com dó, por alguns instantes, receosa de negar ou aceitar aquelas palavras. Como sempre fazia, deixou que o destino decidisse por ela, e fechou os olhos com uma respiração profunda, esperando alguma resposta do solo ou do vento. Sentiu uma pontada na barriga, um chute forte vindo de dentro, e entendeu. Com um sorriso suave, abriu os olhos e, agachando-se, tocou os braços de Nikole com a mãos, olhou-a nos olhos e perguntou:

- Ir com você para onde?

Surpresa, a outra mulher gaguejou por um instante.

- Ah... eu acho que, para as autoridades daqui, alguém que tenha poder para nos ajudar, seja qual for o tipo de ajuda de que precisamos.

- Está bem. Mas hoje só encontraremos alguma autoridade na casa de concertos. Haverá uma
apresentação de uma orquestra estrangeira aqui na ilha, e todas as pessoas importantes vão estar lá.

- Entendo. Pois bem, vamos até lá então, me leve com você, e eu também a levarei.

- Vamos então. Mas primeiro, qual o seu nome.

- Nikole. E o seu?

- Marcela.

Sorrindo, as duas se levantaram. Marcela foi na frente, conduzindo a outra mulher por alguns caminhos mais curtos. Ela se perguntava que espécie de loucura era aquela em que estava envolvida, e que tipo de salvação representaria. Temia que o filho dela estivesse envolvido, como a visão de Nikole dava a entender, e que isso pudesse representar algum perigo para ele. No entanto, não deixava que esses pensamentos a dominassem, e fazia força para confiar no auspício que o chute de seu nenê representara para sua decisão.

Nikole, ao seu lado, acalmava-se lentamente. Mal conseguia entender como chegara até ali, quanto mais o que estava acontecendo com ela e com a mulher que acompanhava. Mas a visão que tivera fora forte o suficiente, parecia ter brotado do fundo de sua alma, um aviso que caminhara pelos elos entre os espíritos e viera parar em sua mente, vindo talvez – assim ela esperava – das almas de seus filhos que haviam partido. Lembrando-se deles mais uma vez, não chorou porém. Pelo contrário, sorriu e olhou para o céu noturno, crente de que dentre as estrelas eles olhavam para ela, e sopravam-lhe, amorosos, conselhos que atravessavam o infinito.

Lado a lado, as duas mulheres pensavam nos próprios filhos, e rezavam em silêncio para que os filhos do presente tivessem um mundo onde viver.

2. O Capitão observa melancólico a ilha se aproximar. De todos que haviam embarcado em seu navio, poucos ainda estavam vivos, e destes, a grande maioria estava enlouquecida, se entregando a orgias entre si e com a comida e a bebida que ainda restavam. Sempre imaginara que fosse ser assim o fim do mundo, as pessoas se entregando aos seus instintos sem medo do que pudesse vir em retribuição, e um ou outro solitário vagando entre os corpos. Ele conseguira controlar parte da tripulação, e era com eles que contava para comandar o barco. Pergunta-se gravemente se é certo levar o navio até a ilha, ou se seria melhor deixar que ele encontre seu fim ali mesmo. No entanto, o seu arraigado senso de dever o compele a seguir o que lhe cabe, e por isso ajeita os comandos para terminar a jornada.

Em seu camarim, o Maestro também pensa em toda a loucura que tomou conta das coisas. Lembra-se de sua indiferença, pouco tempo atrás, quando declamava poesias e deixava que os outros se preocupassem com o fim do mundo. Agora, porém, as palavras de Eliot o assombram, ficam rodando em seu ouvido, dizendo-lhe como o mundo irá acabar. Obstinado, ele toma mais um gole de seu copo e promete a si mesmo que haverá muito estrondo essa noite, que não permitirá ao seu concerto apresentar nada menos que apoteótico.

O Médico tenta se convencer de que é necessário um pouco de distração. Já passa muito tempo recebendo as notícias do mundo, trabalhando em seu laboratório ao mesmo tempo que milhares de outros cientistas pelo mundo, tentando encontrar, nas anotações de Noah Davis e na história da ciência, algum indício que ajude a encontrar a cura para aquele mal que assolava já todos os continentes. Davis se suicidara há dois dias, o que deixou a todos sumamente chocados, e a este Médico especialmente com asco. Como ele pudera desertar da luta tão facilmente? Como pudera negar dessa maneira seu conhecimento e sua inteligência ao resto do mundo? Parecia-lhe patético. Mas, ele tinha certeza, não seria essa noite que chegaria o fim do mundo. Ele poderia tirar algumas horas para apreciar um pouco de música. Não poderia haver problema nenhum nisso.

Já a caminho da sala de concertos, o Líder reflete sobre a situação da ilha. Tem trabalhado incessantemente para impedir a doença de chegar a essas terras, mas há certas coisas que ela não pode contornar. Fechar ou não os portos? Ele não sabe. Há muitos cidadãos dessa terra fora dela, muitos marinheiros e trabalhadores. Deve impedir-lhes de voltar a ver suas casas? Será que a cura chegará a tempo para impedir esse problema? O Líder reza para que sim. Faz uma prece silenciosa, pedindo discernimento, pedindo tempo. Sim, ele reza e pede que o fim do mundo demore ainda a chegar, que ele tenha mais tempo para fazer o que ainda não fez até agora.

Juntas, elas caminham. Nikole vendo as ruas se esvaziando e enchendo num padrão que ela nota sutilmente, seguindo Marcela até onde poderão encontrar algum político, algum cientistas que tenha alguma noção de por que Marcela é importante. Às vezes, Nikole lança um olhar discreto para os lados, um olhar ansioso mas quase imperceptível. Ela não diz nada, mas sabe porque faz aquilo. Espera ver, de relance, ao seu lado, os filhos que perdeu. Já apagou se sua mente há tempos a imagem do fim de seu mundo, de seus filhos convertidos em monstros. Mas as figuras de seus rostos, se seus sorrisos, essas ainda persistem. Ela olha para Marcela, que decidida vai em frente, e sente um amor repentino por aquela moça, um desejo intenso, mas livre de qualquer malícia. Volta então os olhos, de repente, para os lados, crente de que vai pegar os filhos no meio de uma traquinagem, fazendo cócegas em sua mão ou escondendo-se sob sua saia. Mas não há ninguém ali.

E mais a frente, a Salvação medita. Toda a sua vida esteve na ilha, solitária e comum. Então, depois de engravidar, começou a ouvir notícias sobre coisas que aconteciam lá fora. Hoje, porém, o fim do mundo entrou em sua vida, tomou de assalto seus pensamentos. A criança em sua barriga é filha do futuro, ela tem certeza, é uma criança que dará à luz um mundo novo. Não entende como, isso é verdade. Mas os chutes que de tempos em tempos a criança desfere deixam-na cada vez mais decidida a seguir em frente, junto com a moça que apareceu para ela.
Longe dali, vindo do porto, o Assassino anda pelas sombras. Dentro de seu bolso, a mão encontra o metal frio da arma. Ele demorou para tomar a decisão, mas agora não quer mais voltar atrás. O Líder está indeciso, tomado de sentimentos humanos pelos monstros da vacina. Ele vai ajudá-lo a decidir-se. Substitui-se o Líder, e o próximo tomará as medidas certas para proteger a ilha, o Assassino espera. O homem que ele mais ama está no mar, longe, perdido para ele. E agora será assim para sempre. Ele suporta o impulso de chorar, e segue em frente. Seu dever é esse, sempre foi esse. E será cumprido.

3. Ela dançava na chuva, e a chuva se desfazia ao seu redor. Ela carregava em si um traço não nascido do amor. Pessoas passavam, não percebendo que o mundo ruía. Mas sobre suas cabeças eterna inclemente a chuva caía. A batuta bate na madeira, e se ergue, e dança. Ela rola no ar, e vira e revolta e salta, como uma criança. As bocas se preparam, as mãos se postam, e o espírito: contentes. Os instrumentos inspiram e afundam no deserto de sons: ausentes. Mãos trocam cumprimentos e palmas, a última sonata se aproxima, as primeiras notas irrompem, a batuta vibra, a arma se esconde no casaco, os olhos percorrem o cenário, as bocas descontraem-se de assombro, e lá fora, na chuva, ela ainda dança.

4. O palco já estava armado muito antes que os atores pudessem dar-se conta de seus papéis. No palco principal, desenrolar-se-á o clímax da noite: Ali, onde o maestro Bernard Daniel toca sua seleção de sonatas, encontram-se ilustres convidados, como o doutor José Henrique Pádua, médico e cientista renomado, o senhor Antero Diniz, representante do Estado português na Ilha da Madeira, e outros. Periféricos, a rodear a cena central e aproximando-se cada vez mais, há três grupos de atores. De um lado, esgotado física e emocionalmente, o capitão do Nocturnal Sonata vê o porto de Funchal se aproximar cada vez mais e teme por sua própria vida e pela dos habitantes da cidade. De outro lado, alegres e dançantes, Nikole e Marcela estão quase a alcançar a sala de concertos, crentes de que ali encontrarão a resposta para suas perguntas e por conseguinte a salvação do mundo. Finalmente, também se aproximando dali, o personagem mais misterioso, um assassino de nome desconhecido, um marinheiro vivendo em terra firme, desesperado de medo pelo que pode acontecer a si próprio, a um passo de matar o líder, o governador da Ilha, para que o próximo feche os portos e impeça o Mal de chegar até ali.

O destino de cada um já estava traçado, sem que fosse necessário sequer vivê-lo – quanto mais narrá-lo. O que aconteceu, aconteceu e sempre teria acontecido, não poderia não ter acontecido, sempre tomou lugar. A tragédia é visível e se anuncia com rapidez, muitas vezes antes mesmo de aparecer. Desnecessário dizer, mais uma vez, como o medo do homem o cega, como seu mero existir, mesmo com as melhores intenções, já é suficiente para que tudo dê errado e encontre seu fim precipitadamente. Palavrório. Dizê-lo é desnecessário. Basta presenciar, assistir novamente ao que mil vezes já foi visto, ao espetáculo da destruição, à Tragédia, aos fios que se enlaçam lentamente e encontram seu clímax num mesmo exato e precioso instante. Sim, leitor, você adivinhou o que aconteceria. Somente duas opções se colocavam à sua frente, à medida que a história se estreitava, e você sabia qual delas teria a maior chance de acontecer. Você sabia que mais uma vez o que estava sendo dito era “Como os humanos são, não?”, você sabia que era essa a verdade da desolação, a sombra que paira sobre nós desde o início até o fim dos tempos, concomitantemente, inescapável. Sim, você sabia já de antemão o que aconteceria, e agora basta presenciar:

Nikole, puxando Marcela pelo braço, invade a sala de concertos e corre em direção àquele que a outra disse ser o governador, o que poderia fazer algo com a Salvação. No porto, o Nocturnal Sonata acaba de parar, e na ponte o capitão dá seus últimos suspiros, enquanto todos aqueles seres pálidos, aqueles monstros, pulam na água e nadam pateticamente em direção à terra firme. Sentados lado a lado, o médico e o líder ouvem as notas belíssimas, aquela expressão indizível do gênio humano, e lamentam que tudo aquilo esteja fadado ao fim. De seu pedestal, o maestro rege, quase apaticamente, a orquestra, e sente suas forças o abandonando, sua esperança e sua motivação para conduzir aquela explosão de sentimento se esvaindo, evaporando pouco a pouco no ar rarefeito do mundo pálido. Também invasor, o assassino só não faz mais estrondo que as duas mulheres, que mais rápidas que ele jogam-se aos pés do líder, o espantam, chamam a atenção do maestro, interrompem a música, gritam ao médico, elevam as pessoas das cadeiras, assustam o outro invasor e recebem no peito as balas precocemente disparadas em direção ao homem a quem imploravam enquanto as últimas vibrações dos instrumentos silenciando-se apagam-se sepultando toda a esperança e toda a salvação e anunciando por fim a morte do Mundo e de todos os que nele vivem.

FIM
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