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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Sonata noturna [9]

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Fúria (9/10)


Por Pudim (e Tuma)
Foto: Guilherme Carnaúba

No apartamento silencioso o maestro Bernard Daniel lia poemas proclamando-os a quebrar o silêncio em alta voz que se derramava e ressoava nas paredes criando assim um agradável ambiente de poesia rarefeita misturada ao ar frio do recinto. Sobre a mesa de centro vários livros se espalhavam Leaves of Grass Whitman tão poderoso e as obras completas de Emily Dickinson Robert Frost Yeats Auden Shelley e outros cujos nomes se haviam tornado menos célebres para a posteridade.

Lia com especial interesse poemas de dois livros. No primeiro se lia em grandes letras na capa o nome Macbeth sustentado abaixo pelas letras que indicavam sua autoria e no segundo o genérico título Poems era seguido por um pomposo T.S. Eliot escrito em letras brilhantes.

Se ao ter o primeiro em mãos lhe perguntassem que poema estava lendo ele objetaria e diria ser aquilo uma peça, com personagens e falas, mas uma linguagem tão mágica e idéias tão brilhantes que só o proclamá-los já os fazia ganhar vida. Quanto ao segundo, possuía instantes de estranheza, versos quase espasmos, frases insondáveis que escondendo um mistério irrevogável revelavam uma verdade intransigente. Seus gestos teatrais e voz grave encaixavam perfeitamente com os textos que lia e a solidão que o rodeava.

"Tomorrow and tomorrow and tomorrow,
Creeps in this petty pace from day to day

To the last syllable of recorded time,
And all our yesterdays have lighted fools

The way to dusty death. Out, out, brief candle!

Life's but a walking shadow, a poor player

That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury,

Signifying nothing."


[“Amanhã e amanhã e amanhã,
Dia a dia se escoam de mansinho,
Até que chegue, enfim, a última sílaba do livro da memória.
Nossos ontens para os tolos deixam clara
A estrada da empoeirada morte. Fora! apaga-te,candeia transitória!
A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre cômico
Que se empavona e agita por uma hora no palco,
Sem que seja, após, ouvido: é uma história
Contada por um idiota, cheia de som e fúria,
Que nada significa.”]

E então pára, sem fôlego e sem reação para os pensamentos que lhe invadem a mente. Larga o livro e toma o outro, percorrendo suas páginas freneticamente, até encontrar algum indício que contemple sua angústia, as palavras que ele sempre persegue.

“This is the way the world ends

This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.”

[“Assim o mundo termina,
Assim o mundo termina,
Assim o mundo termina.
Não com uma explosão, mas com um suspiro.”]

Após a leitura em êxtase, ele respira e descansa. Seu grande dia está chegando, a apresentação com a orquestra, sonatas de Mozart e Beethoven executadas com maestria para uma platéia ilustre. As notícias do Mal que assoma os que tomam a vacina da AIDS não o preocupam, aquilo não lhe diz respeito. Amanhã toma o avião, e logo estará em Funchal. Amanhã, amanhã, amanhã...

*** *** ***

Dia após dia, surgia um novo alguém tomado pela doença pálida no barco de Nikole, e seu medo de ser a próxima crescia à medida que diminuía o número de pessoas no barco e eles seguiam para o norte.

*** *** ***

Nos porões do Nocturnal Sonata, haviam surgido mais vários infectados. O capitão tentou intervir, mas logo desistiu. Pensava em chegar à Ilha da Madeira – a tripulação e os passageiros haviam recebido com alegria a notícia de que a vacina nem passara por lá antes do surto do Mal – desembarcar os passageiros e manter os outros em quarentena enquanto se comunicava com o governo, mas não deu tempo. Fazendo dois dias que estavam presos lá embaixo, os primeiros descorados surgiram, e atacaram violentamente os que estavam ao redor. Foram parados e mortos, e o capitão os atirou ao mar, mas no dia seguinte surgiram duas vezes mais infectados, e antes da noite todos ali já haviam se matado. A carnificina era horrível, e o capitão lacrou todas as entradas como medida de segurança, além de ficar ele próprio e alguns de seus imediatos isolados temporariamente do resto do navio.

*** *** ***

Leo passa os dias no laboratório, rezando para encontrar alguma esperança. O Mal ainda não o atacou, e isso só o enche mais de culpa. Provetas, ampolas, béqueres dançam de um lado para o outro em suas mãos, o microscópio é requisitado a todo o instante, mas seus experimentos só o levam a becos sem saída, a conclusões inúteis, fechadas em si mesmas.

Hoje mais uma vez ele se isola, e diletantemente retoma suas atividades, um pouco desajeitado. Acordou suando na cama, com dor de cabeça, mas nem cogitou ficar em casa. O laboratório é sua única casa, agora, sua única opção. Mas continuar sua pesquisa está exigindo muito de seu corpo. Seus braços estão doendo, a cabeça parece prestes a explodir, sua visão se turva por um estante, uma proveta escorrega de sua mão e se espatifa no chão, tudo a sua volta escurece e se torna negro...

*** *** ***

Aconteceu de repente. Pessoas caminhando nas ruas, preocupadas com seus afazeres diários, já esquecidas do Mal que a tal vacina da AIDS trouxe para o mundo. Até mesmo na África, dizem os noticiários, o surto de violência foi contido: agora uma investigação será feita, ela é necessária, mas não há pressa. Um dos que andam na rua é um detetive da polícia científica, ele esteve dois dias atrás em contato com corpos dos afetados pelo Mal, para tentar averiguar o que aconteceu com eles, mas agora sua mente passeia livremente sem se apegar a nenhuma preocupação. Quando ele pára no meio fio para atravessar a rua, as listras brancas da faixa de pedestres saltam brilhantes sobre seus olhos. Ele recua um passo, assustado, e subitamente sua cabeça começa a latejar com força. Dá mais um passo para trás e cai no chão, agora já gritando da dor que esmaga seu corpo por dentro. Sua pele começa a embranquecer, seu corpo começar a verter sangue como suor, de sua fraqueza surge sem explicação uma força, um impulso violento, uma fúria que o leva a atacar pessoas desesperadas ao seu redor.

Em todo o mundo, cenas semelhantes acontecem. Os que tiveram contato próximo com os infectados, os pálidos, de uma hora para a outra se tornam como eles, e o Mal se espalha, furioso, destruidor, inclemente, impossível de ser parado. A palidez e a violência, num átimo, se tornam piores do que jamais haviam sido, e avançam com as garras erguidas sobre a pobre humanidade.

*** *** ***

Enquanto acompanhava as terríveis imagens dos massacres e dos combates promovidos pelos pálidos, Noah engatilhou sua arma e a virou de frente para si, disposto a encará-la uma última vez. Com alguma dificuldade, suas mãos tremendo, ele aproximou o cano do revólver de sua boca, e o introduziu ali, o aço frio roçando em seus lábios. Fechou os olhos, apertou-os com força. Não queria ver o que seu gênio criara, não queria ver o que ele destruiria. Puxou o gatilho sem esforço, logo após respirar fundo, e seu fôlego se espalhou pelos ares. A bala encontrou sua espinha no meio do movimento dos pulmões, e os deixou impedidos, incompletos, um movimento que, pela única vez na vida de Noah, foi só de subida. Sem forças para enfrentar sua própria criação, ele recorreu a uma força maior que a sua, e suando frio saltou no abismo.

*** *** ***

Já não era possível diferenciar os vivos, os pálidos e os mortos no barco ensangüentado, e as consciências aninhadas nos corpos se desintegravam lentamente, num processo de fusão com o sangue e o horror. Nikole saltou no mar para fugir de seus agressores, já não sabia se os acusava de pálidos violentos ou vivos impiedosos, e começou a nadar, rápido, braçada após braçada, ofegando e tentando não deixar sua mente derivar e acabar afundando, de pesada. Mordendo a língua para pensar só na dor, ela nadou por muito tempo até encontrar a praia.

Longe dali, Leo gritou, um grito surdo que mais pareceu um pedido de socorro, ou de perdão. A escuridão voltou, e sumiu, e então voltou e sumiu de novo, e então cada vez mais rápido, no instante de uma expiração, para no fim desaparecer definitivamente e dar lugar ao branco final que tomou os olhos de Leo e o jogou para além da morte.
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Anti-Humor [13]

Dr. Sigmund Freud (sim, ele já escutou a piadinha do Fraud), visto em seus aparentemente eternos 59 anos, que não achou graça nenhuma no texto que se segue (embora, subconscientemente tenha dado uns sorrisinhos). Logo após o retrato, ele fez questão de apresentar o artista ao seu aparente fascínio reprimido por pênis abaixo-da-média circuncisados (como demonstrado pelo charuto)
por Rodrigo Faustini/Subconsciente de Rodrigo Faustini

issoestáescritoEntrevista com Meu Subconsciente
Antes de tudo, consciente (toma essa!) das perguntas geradas apenas pela leitura do título desse texto, esclareço: consegui essa façanha seguindo a praxe todo o processo que leva pessoas normais a escutarem vozes em suas cabeças*, ou seja, me mudei para um poço cavernoso (a preços inconcebíveis, devo adicionar) levando nada senão um tabuleiro de xadrez, talheres de luxo, um pacote de camisinhas, um porta-retrato com a foto de uma pessoa que eu não conheço (severamente abusada durante a minha estadia; desculpe), um hímen aromatizante, um espelho com “Red Rum” escrito em batom e um desenho feito a crayon de uma mulher da antiga União Soviética nua (para diversão). Como esperado, não mais que 56 meses depois eu escutava a voz de meu subconsciente, sem incluir as minhas recém-descobertas habilidades nos campos do crescimento gradativo de unhas e no piscar voluntário de pálpebras.Sem mais delongas, segue-se a entrevista:

Eu: Bem-vindo. Você gostaria de uma bebida ou algum outro refresco em específico?

SC: Não. Mas acho que você quer.

Eu: Não, claro que não. Eu estava sendo apenas cordial. Eu nem gosto de líquidos. Meu interior funciona através de um complicado sistema de trocas de gases. Nada de refrescos pra mim. [risos]

SC: Ok, ok. O que eu saberia disso afinal?

Eu: [saio para pegar uma Coca da geladeira] [volto] Isso é um pouco desconfortável. Eu...eu...

SC: Você tem um problema em demonstrar seus desejos em público. Quero dizer, nós.

Eu: Wow, como você sabia disso?

SC: Eu sou o seu subconsciente, seu lesado. Você não fez nenhuma pesquisa para essa entrevista, fez?

Eu: Bem, em minha defesa, nesse caso conhecer sobre você seria alcançável apenas por 14 anos de terapia, níveis budísticos de paz interior e um nirvana nível sete, só alcançado até hoje por Hasundi Hjanad, e ele só conseguiu isso pois ele sofre de um outro complexo psicológico que o faz pensar que é um rato, o que leva seus pensamentos subconscientes variarem numa escala simples apenas baseada em queijo e compulsão por sujeira.

SC: Você não consegue se comprometer a nada, não é? Sem contar as suas desculpas ridículas.

Eu: Eu não fico criando desculpas ridículas. As pessoas que não me entendem, pois eu possuo uma imaginação fértil.

SC: Na verdade, seu medo de comprometimento vem de um caso específico na sua infância em que você prometeu ao seu colega do parquinho Frederico que você iria brincar na casa dele mais tarde naquele dia, mas ao invés disso você preferiu ficar no seu quintal tentando fisgar o Sol com a vara de pesca do seu pai, o que levou Frederico a cometer suicídio ao pular do topo do escorregador após ferir (gradativamente) seu pescoço com uma arminha d’água.

Eu: [chorando bravamente; envolto de reminiscências] É tudo verdade! Pobre Frederico! Mas eu realmente achei que eu iria conseguir pescar o Sol aquele dia! Eu até coloquei uma alma Asteca no anzol como isca! Nós teríamos o que comer por séculos.

SC: E todo esse seu fascínio infantil pelo Sol e a conseqüente captura desse para a alimentação vinha de sua vontade interna, ou seja, minha, e, portanto nossa, de provar ao seu pai que você era capaz de pescar assim como ele, possivelmente até um pouco melhor. O quê nos leva também ao fato de que você realmente exagerava nas proporções dos talentos manuais do seu pai.

Eu: Por quê você não me disse isso antes? Isso poderia ter acabado com o meu medo do Universo e eu poderia ser um astronauta agora, como eu sempre quis! Sem contar que eu não precisaria mais usar óculos, pois eu nunca teria passado horas encarando o Sol para ver se ele desistia! E aquele Asteca deve ter passado por um inferno celestial burocrático depois que eu roubei a alma dele usando viagem temporal, dois Nostradamus e aquela erva que faz gatos agirem estranho.

SC: Você não entende, seu bosta! Se você estivesse conscientemente querendo impressionar seu pai, ele o incentivaria a tentar uma carreira espacial, a qual você seguiria, pois iria querer impressioná-lo. Mas, por causa da propriedade reversiva das vontades subconscientes (que Freud totalmente esqueceu de analisar, por sinal) isso significaria que, internamente, você queria mesmo era pescar o Sol, o que, cortando um bom pedaço de história, acabaria com você mudando a rota de uma nave da NASA para colisão solar, pedindo a todos para se prepararem para “o churrasco do século” o que se provaria morbidamente irônico em 2 anos-luz.

Eu: [olhos sorrateiros] Então existe um jeito de capturar o Sol... [pausa enorme] Então, parece que você, ou melhor, eu, e, portanto, nós, sabemos muito mais do que eu sobre nós mesmos. Têm como você me apresentar ao meu inconsciente?

SC: Nem, ele tá dormindo. Mas bem que a sua Síndrome de Suplicância e o seu Complexo de Inferioridade estão aqui e desejam te dizer umas coisas...

Síndrome de Suplicância
: Desculpa por tudo, cara. Não foi por querer, falando sério. Eu...eu...O que eu posso fazer pra te recompensar? Eu posso tentar convencer a sua Libido de parar de ter um relacionamento com o seu Ego, cara, eu posso sim. Eu juro. Só não me ponha na rua. Eu não poderia encarar ter que me desculpar pros meus filhos, pois eu perdi o meu trabalho e ter que me sentir compelido a recompensá-los de forma gratificante por isso cara. Eu faço qualquer coisa. Desculpa. Não fique arrependido...

Complexo de Inferioridade: Eu nem sei por quê você me escuta. Eu não sou nada, sem zoeira. Eu sou, tipo, uma fração de uma fração da sua mente. E nós nem somos tão espertos assim, admite. Acho que até a sua Auto-estima é mais importante que eu. Mas bem que ela é uma mentirosa compulsiva. Eu nunca ia conseguir namorar ela. Eu até poderia cortar o cabelo e escovar os dentes sabe, mas qual o propósito? Ela só se interessa em tipos esnobes que nem o seu Sarcasmo, Sociabilidade e Gentileza mesmo.

[A entrevista parou aqui, pois o meu senso de Ironia começou a passar mal. De qualquer forma, eu não irei mais tentar conversar com o meu Subconsciente, pois, aparentemente, ele é um babaca arrogante, e danem-se as implicações psicológicas e filosóficas dessa afirmação.]

*havia um considerável risco envolvido nisso, mas o pior que poderia acontecer seria de eu abar por virar um profeta, o que se demonstraria uma melhoria moral significativa, se consideradas minhas intenções originais, embora tal profissão apresente um alto índice de acidentes no trabalho e eu não tenha qualquer conhecimento sobre a política de Deus quanto ao pagamento de indenizações. Ele não inclui muito disso em seu livro.

terça-feira, 24 de fevereiro de 2009

Para ler com pressa.

Foto por Bruna Pimenta.


por Stefano Manzolli.

Uma lembrança.

Era uma pequena confraternização familiar.

Meu tio Sebastião corria de um lado para o outro com sua câmera nova - como uma criança que procura todas as formas de usar o seu novo brinquedo. Todos tinham suas histórias para contar e, em parte, os jovens só escutavam os mais velhos. Eu, por isso, permanecia calado e vagando... E as lembranças que as vozes revelavam pareciam maiores, grandes colossos que o tempo construiu na nossa história, na chama eterna da memória - dentro de cada um, no mesmo lugar em que adormece as esperanças para o futuro.

E foi na mágica da introspecção que me encontrei, verdadeiro. Ocorreu-me uma história antiga e linda que já tinha deixado, quase totalmente, ser levada com o tempo. Foi nesse momento que uma lágrima pendeu do meu rosto direto para o chão, onde permaneceu quieta e viva para sempre.

Um Monza vinho, os três primos no banco traseiro, nenhum com mais de sete anos, Sebastião dirigindo. Observávamos a cidade correr do lado de fora do veículo, a brisa intensa fazia cócegas em nossos rostos e balançava os cabelos. No céu, todas as cores, muita vida, um dia que terminava calmamente.

- Vou contar uma coisa para vocês... – meu tio, com uma paz tremenda na voz, parecia saber o mais legal de todos os segredos. - quando o dia está indo embora, vem anjos e derramam um monte de tinta no céu, até que elas escorrem, misturam-se e formam o azul bem escuro da noite. E quando a gente vai dormir, eles voltam para Terra e desenham os nossos sonhos.

- E os pesadelos, papai? - minha prima perguntou-lhe.

- Às vezes... acaba a tinta das canetinhas e os anjos não tem com o que desenhar, daí a gente sonha essas coisas ruins. Mas, em noites assim, eles acordam as crianças para irem dormir com seus pais e ficarem seguras de novo.

Mil cores no crepúsculo.

Todas refletidas nos nossos olhos úmidos.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Anti-Humor [12] Deluxe Version


por Rodrigo Faustini, Leandro Vasconcello, Mônica Fallonçio, Hemerson Glaúberson e mais duas outras subdivisões do seu cérebro esquizofrênico



Caçadores De Respostas para Perguntas Filosóficas Eternas

1-“Se uma árvore cai na floresta e ninguém está lá para escutar, que som ela faz?” Uma questão secular que complica há milênios a vida de monges tibetanos carecas (eles fingem que isso é uma escolha; sabemos que é causado por estresse), parece bem complicada de se responder por suas características retóricas intrínsecas, seja lá o quê isso seja. É por isso que resolvemos trazer um pouco da sabedoria ocidental tecnológica no processo: instalamos um intenso e avançado sistema de vigilância ao redor de uma floresta inteira (claro que tivemos permissão para tal; por sorte, após anos envolvidos no ambientalismo, os ativistas e guardas florestais desenvolveram um agudo caso de zoofilia, permutando a possibilidade com interesse).
Nossa primeira descoberta foi que árvores não costumam cair do nada, o quê, além de questionar as habilidades dos monges em conceber probabilidades e situações hipotéticas (muito comum quando o assunto são autoridades religiosas reclusas), acabou por nos conduzir a um obstáculo. Por sorte nossa racionalidade nos levou a instalação de várias baterias no subsolo da floresta que, quando acionadas, produziriam ondas eletromagnéticas de alta freqüência, o que causaria um potente terremoto no local (leitor, não se preocupe, tivemos um cuidado mínimo com o meio ambiente: aquela floresta era totalmente biodegradável).
Aparentemente foi apenas na décima quarta floresta que nos lembramos de no distanciarmos do local, o que necessitou uma completa reinstalação do material no local para conseguirmos manipulá-lo à distância. E agora temos tudo em vídeo, em cores e em alto e bom som: o som de uma árvore caindo numa floresta, quando não há ninguém lá para escutar, é idêntico ao som de uma árvore caindo na floresta quando há alguém (ou um grupo) lá para escutar. Desculpe-nos monges budistas, mas nós fomos mais sagazes que vocês!
De qualquer forma, a experiência não se mostrou um fracasso total: certamente o nosso empenho e os pequenos avanços que fizemos no campo de manipulação de desastres naturais certamente cairá bem para a mente dos estrategistas do exército por todo o mundo.

2- “Deus existe?” Um comum tema de redações de vestibular e também uma pergunta que persegue a mente do homem desde que Adão e Eva habitavam (e “habitavam”, se você pegou a idéia hur-hur) o planeta, parece, à primeira vista, incrivelmente complicada para uma mera mente humana ponderar sobre. Esquece-se, porém, de manter os nossos pensamentos sobre o assunto básicos: nossa solução foi dar a Deus (adeus hur-hur) um ultimato. Começamos por simplesmente seqüestrar uma criança e mantê-la refém em cativeiro por vários dias (não se preocupe, leitor: nós tínhamos outro lugar pra dormir na casa).
Como esperado a mídia começou a criar histeria como se tivéssemos roubado doce de uma criança, e a polícia começou uma intensa busca pelo território nacional, mas todos foram acalmados depois de declararmos nossas intenções dêiticas com o crime, embora, obviamente, não contamos isso para Deus e a criança. Era hora do passo 2 do plano, no qual rezamos o seguinte pedido de resgate: “Querido Deus, sou eu, Margaret. Como você vê, eu seqüestrei uma criança, que é um de seus filhos adorados. Se você quer ver ele de novo, e com isso quero dizer vivo, pois sei sobre toda aquela sua história de onisciência, queremos que nos dê um sinal de sua existência nos próximos dois dias”.
Nada aconteceu. Chegamos às conclusões de que ou Deus não existe ou ele não se importava muito com aquele moleque em específico, o que nos levou a seqüestrar outros quatro, algo difícil na época, pois, por algum motivo, nossos corpos começaram a fazer movimentos involuntários contínuos, e escutávamos vozes sem sentido que nos falavam de punição pós-vida e moralidade. A conclusão foi, após tudo isso, que infelizmente é incrivelmente sacrilegioso pesquisar sobre a existência concreta Dele, então paramos a pesquisa e um tornado de fogo destruiu o meu carro. Não queremos impor nenhuma barreira no credo de ninguém, mas gostaríamos de avisar: se você é daquela religião que acredita em Jesus, embora não em Deus, você está fazendo algo errado.

3- “Essa calça faz a minha bunda ficar grande?”
Como colocado elegantemente por Dr. Sir-Mix-A-Lot:


4- “Poderia a Vida não passar de um Sonho?” - Eu belisquei meu parceiro. Nada aconteceu. Caso provado.

5- “Qual o propósito do homem?”
- Criar robôs (sim, levamos mais de 10 mil anos para atingirmos nosso destino. Mas até que foi legal, exceto as guerras e aquela baboseira de Inquisição que fazemos de vez em quando). Pois esses sim têm um propósito digno, embora os japoneses estejam forçando a barra com esses novos Robôs de Busca de Cavidades. Tão cedo quanto eles descobrirem o estrago que eles podem fazer a si mesmos com um copo d’água estaremos perdidos. A outra resposta possível é que o Criador desgostou do Universo depois de um tempo, mas não queria deixar suas mãos sujas, e está nos usando como “laranjas” para acabar com tudo. Se for assim, ele deve estar bem contente.

6- “Qual o sentido da Vida?” A própria busca por este. Brincadeira, ninguém sabe. Mas não precisaria de uma direção primeiro? Ou vocês sabem de algo que eu não sei? Seus bastardos, tem alguma coisa a ver com comer gengibre, gostar do cheiro de incensos, ter lido “O Segredo” e gostado, achar que Samuel é um bom nome para um filho, fumar em espaços fechados usando óculos escuros e ter vários gatos, não é? Eu sabia que vocês eram diferentes de alguma forma. Eu só julguei como solidão e uma visão melancólica de masoquismo.

7- “Existe vida fora da Terra?” Sim, mas o custo do IPTU, IPVA, IPVOVNI e IPVEJMSUMT realmente não valem a pena. Além do mais, demora muito para aprender a se comunicar via secreções oculares.


Minha Primeira Relação Sexual
(como narrada pelo ponto de vista da minha camisinha)

...

...

...

...Seu filho da puta

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Sonata noturna [8]

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Noite (8/10)


Por Pudim (e Tuma)
Foto: Bruna Pimenta


A ganância ainda vai destruir o mundo, filho, disse o pai para o menino de olhos arregalados e nariz escorrendo sentado no assoalho frio da pequena casa que a família alugava do mais poderoso dono de terras da região. As galinhas corriam e cacarejavam de olhos arregalados ao redor dos dois o sol fustigava a poeira havia uma meia luz envolvendo tudo um calor que aderia à pele um cansaço de fim de tarde e fim de semana suportado pela suposta leveza de uma manhã de terça-feira.
Os homens querem todo o ganho para eles, e não sabem dividi-lo com os outros, o pai agarrando seus ombros olhando bem fundo em seus olhos, tentando achar ali algum resquício de malícia. O garoto permanecia quieto, sem piscar, olhos erguidos para o rosto enorme feito pedra daquele homem grande e firme que sempre chamara de pai.
Leonardo, você está me ouvindo? Sim ele estava. No carro ao volante girando e volvendo e revolvendo e entrando pelas ruas e singrando avenidas caóticas ele ouvia de novo e de novo as palavras do pai e não sabia se sentia-se bem ou mal por tudo o que fizera. Decidiu-se pela dúvida.
Dissera a Noah logo que este lhe contou que iria deixar as patentes para ele. Primeiro sentiu-se feliz mas logo depois os olhos do pai apareceram à sua frente e sua consciência estremeceu e ele percebeu que enorme chance era aquela de cumprir sua missão na terra. Iria abrir a patente, deixar que a vacina fosse produzida no mundo todo livremente, alcançar a todos os doentes livremente.
Agora imaginava se aquilo não havia destruído tudo. A patente aberta, alguém poderia ter incluído no processo um jeito de um incluir algum agente nocivo que não fosse perceptível. Mas seria mesmo? Noah afirmava que o mal estava na própria vacina, mas para Leo qualquer opção era terrível... o que contava a favor da tese do colega era que Leo, assim como as outras cobaias, não haviam desenvolvido ainda nenhum dos sintomas do Mal. Mas ele estava com medo, e ansioso.
Ele tentava noite após noite descobrir o que no que haviam criado poderia causar aquilo, ou que tipo de vírus, bactéria ou aberração poderia causar aquele efeito horrendo nas pessoas. Mas ele não encontrava. Noite após noite, Leo tentava e não chegava a lugar algum, e as palavras de seu pai, sempre as mesmas, continuavam a ressoar em seus ouvidos, um sussurro baixo e insuportável que parecia sugerir que o significado do que aquele velho lavrador dissera era muito diferente do que Leo sempre imaginara.

*** *** ***

Nikole se recolhera num canto do barco, os dedos ferindo-lhe as mãos de tanto apertar, os dentes tremendo e batendo, olhos olhando frenético para os lados, com medo de que alguém a tomasse por descorada sob a luz plácida da lua cheia.

*** *** ***

Noah recebera a visita de um agente do governo aquela tarde. Ele dissera que por enquanto a versão oficial era mesmo algum tipo de ato terrorista, as vacinações já haviam sido suspensas no mundo todo. Alguns governos estavam loucos para acusar o país de espalhar a vacina pelo mundo, mas ele não precisaria se preocupar, o mais importante era que ele descansasse e ficasse em segurança. Uma junta de pesquisadores já estava empenhada em monitorar os infectados e descobrir se havia outras maneiras do agente nocivo ser transmitido além na inoculação. Quando ele foi embora já era noite, e Noah ficou bebendo e rindo sozinho, pensando em como a opinião do governo, e do mundo, era a menor de suas preocupações.

*** *** ***

As festas no Nocturnal Sonata atravessavam madrugadas, e os passageiros remanescentes entregavam-se aos bacanais impetuosamente. Os que haviam tido mais contato com os infectados permaneciam isolados, mas só a tripulação se lembrava deles. Os outros passageiros festejavam noite e dia, enchendo os corpos de álcool e outras drogas psicotrópicas para apagar qualquer resquício, qualquer lembrança de que havia um mundo agonizante lá fora, e de que ele havia penetrado no paraíso deles, e de que eles o haviam purgado sem piedade, afundando-o à força na mortalha do mar.
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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Sonata noturna [7]

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Profundezas (7/10)


Por Pudim (e Tuma)
Foto: Bruna Pimenta


Notícias da África chegavam a todo instante, os passageiros sabiam, mas pouco se preocupavam, para que ligar para o continente amaldiçoado? Já há tantos séculos eles estavam esmigalhados sob os pés de suas sinas que esse talvez fosse o último evento que restava para acabar de destruí-los e dar lugar a novos usos para a terra ora amaldiçoada por sua presença.
Ainda assim, eles precisavam saber. Havia alguém no navio que recebera a vacina ou...? Não, se afastaram das costas do continente, poderiam parar no Brasil para abastecer, lá haveria segurança. Assim como em todo o mundo civilizado. Sim, as nações do pôr-do-sol haveriam de conter esse horrível ato certamente terrorista perpetrado pela tal vacina maldita. O último suspiro numa dose e agulhada. Brasil estaria bem, abastecer, não muito mais, o navio é ótimo, o que era realmente importante... isso, continuar a viagem, atravessar o Atlântico, abastecer no Brasil, sair de lá bem rápido, passear pelo Caribe e, ai, aproveitar um esplêndido concerto em Funchal.
Mas ainda assim, eles queriam saber. Havia alguém no navio que recebera a vacina ou...?

*** *** ***

Noah tentava encarar seu fracasso como encarava o copo de bebida à sua frente. A imagem do vírus se espedaçando parecia-lhe curiosamente irônica agora, uma imagem definitiva do que ele trouxera para o mundo. Leo tentara convencê-lo de que houvera alguma modificação, de que alguém sabotara a vacinação, mas era inútil. Ele se lançara numa busca obsessiva para descobrir porque a vacina estava fazendo aquilo com as pessoas, transformando-as lentamente em bolhas quase sem vida, por vezes violentas, enquanto aqueles à sua volta fugiam horrorizados. Mas era inútil. Noah fracassara, e sabia disso. Agora teria de se explicar em frente ao mundo, quando viessem cobrar dele a culpa por aquilo tudo, quando viessem julgá-lo. Isso se ainda houvesse mundo após aquele surto de palidez e violência passar. Mas Noah não acreditava que fosse passar. Sua experiência lhe ensinara que a palidez e a violência eram como a entropia: recrudescentes, inexoráveis. E o fato de que ele trouxera ao mundo aquele juízo era mais insuportável que qualquer julgamento. Procurando dessa vez retirar de sua mente a culpa cada vez maior que ali se desenhava, olhou de novo para o copo, e o levantou com seus rodamoinhos, e deixou sua mente afundar ali completamente.

*** *** ***

Boris saía pouco de sua cabine, sempre sozinho, mas as passagens não eram para dois? Alguns passageiros que ele conhecera entre drinques no bar começaram a perguntar “Mas e sua mulher, está viajando com ela não?” “Ela não está se sentindo muito bem.” “Leve-a à enfermaria do navio.” “Acho melhor não, ela prefere tratamentos aos quais está acostumada, mais caseiros sabe? Coisa da mãe...” Rápido os conhecidos voltavam os olhos para o copo e bebiam de um só gole buscando tirar da cabeça as desconfianças que pareciam rodopiar cada vez mais fortes à frente de seus olhos.
E na cabine, Eva Norton, sua mulher, empalidecia pouco a pouco.

*** *** ***

Os pais de Érica, por sua vez, ficavam fora da cabine o tempo todo. Haviam arrastado a filha para aquela viagem, totalmente contra a vontade da voluntariosa menina, ainda chorando pela morte da amiga. Eles tinham medo. Quando alguém perguntava dela, desconversavam. Às vezes traziam-na para fora, para mostrar aos outros a filha branca e apática que tinham, toda coberta de badulaques que só faziam assomar ainda mais sua brancura, em contraste. As pessoas da piscina começaram a cochichar, os pais ficavam constrangidos pelo silêncio da menina, envergonhados de se mostrarem tão incapazes em público, e horrorizados de medo de alguém desconfiar que ela, a filhinha tão querida, poderia estar com aquela doença macabra, a doença que deixava tudo branco, transparente, até desaparecer.

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Nikole viu o transatlântico passar ao longe com seu binóculo e avisou ao resto das pessoas do barco. Alguns quiseram ver com os próprios olhos, a nu só enxergavam um borrão no horizonte, e o binóculo passou por várias mãos até escorregar entre braços que tentavam alcançá-lo impacientes e cair no mar. Agora o navio não era mais visível. A mulher se afastou da amurada e foi se encostar na parede da pequena cabine. O barco era de um tamanho médio, mas tornara-se minúsculo para todas aquelas pessoas. Um homem grande sentou ao lado de Nikole, e com ele uma mulher magra, três garotas e um casal de velhos. A mulher se apoiava no ombro do marido, como dormindo. Nikole, apertada pelo acúmulo de pessoas à sua volta, olhava aquela cena e se lembrava de seu marido, morto recentemente. E dos filhos, empalidecendo, se atacando e sangrando. Já superara em parte o choque inicial, mas os olhos e os dentes de suas crianças, a agulha lhes furando a pele, as mãozinhas se agarrando, a pele sendo rasgada... mordeu os lábios para não chorar, mas acabou derramando algumas lágrimas, que logo secou com o antebraço, não querendo chamar atenção.
Tornou a olhar para o casal de velhos, eles pareciam tão carinhosos um com o outro. E sol forte refletia na água e tornava tudo difuso, o toldo que cobria a maior parte do barco parecia gasoso, as pessoas andando pelo convés eram só sombras, o suor de todos que se espremiam evaporava rapidamente e espalhava um odor forte por todo o barco. Palavras ditas e gritadas se confundiam com o barulho das ondas, a languidez tomava os sentidos de assalto, a tristeza demolia as últimas tentativas de resistência, o horror ocupava os corações e mentes vazios... a sombra de um pássaro grande veio do céu e cobriu todos com seu olhar, esquadrinhou as cabeças mais inóspitas, os erros mais férteis, e fez ninhos atrás das orelhas de cada um, roçando de leve as peles com suas penas e fazendo cócegas...
Nikole despertou de seu transe e viu o homem grande que se sentara ao seu lado gritar com o casal se velhos, outros se juntaram a ele, uma das garotas apontou para as outras duas que se sentavam a seu lado, ouviu-se imprecações e acusações, pessoas que estavam sentadas se levantaram, pessoas que estavam deitadas permaneceram assim, braços se ergueram, homens mulheres e crianças descorantes clamaram por piedade de joelhos, as pessoas deitadas continuavam deitadas, quando na verdade estavam mortas, e assim todos foram agarrados e com barulho e ranger de dentes jogados ao mar e espancados com os remos.

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Eles iam descobrir mesmo, mais cedo ou mais tarde, disse o pai à mãe horrorizada. Eu não agüentei o olhar de desconfiança deles sobre mim, eu não agüentei me perdoe... palavras interrompidas por um sonoro tapa continuaram jorrando junto ao choro mas foram logo caladas pelo estrépito de passos e gritos que irromperam junto à cabine. A mulher tentava tirar a filha da inércia, inutilmente, e o pai continuava lamentando e chorando debilmente. Não demorou e a porta foi arrombada a mãe clamava por piedade mas a empurraram e ela caiu e desmaiou enquanto o marido observava tudo com os olhos arregalados.
Em várias cabines pelo navio, acontecia o mesmo. O primeiro caso confirmado de palidez gerou uma onda de histeria que acabou por formar vários grupos de patrulha a rondar pelos corredores e arrombar portas e revistar quartos e fazer interrogatórios para depois agarrar os contaminados e levá-los para fora. Alguns corados tentavam interceder a favor dos doentes, o comandante pensou em tentar conter o surto com armas, mas parte da tripulação se havia voltado contra os descorados. Sugeriram isolamento, quarentena, cárcere, abandono em botes, mas o desespero falava mais alto não podiam prescindir dos botes não podiam arriscar uma fuga não podiam arriscar a contaminação. O não-preocupar-se hipócrita dera lugar definitivamente à paranóia que se havia desenvolvido silenciosamente no interior das almas de todos.
Durante a noite os primeiros foram jogados ao mar, e nos dias seguintes muitos mais encontraram seu fim nas águas geladas.

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O mar, como sempre fizera, recebeu indiferente seus mortos, e cada corpo e consciência que quebrava sua superfície era engolido por um torvelinho e afundava até as profundezas.
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terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Para ler com pressa.

Foto por Bruna Pimenta.


NOTTE.


por Stefano Manzolli.


Noite.

Sob o céu estrelado, a cidade se defaz sem pudores.

Primeiro, as formas perdem seus contornos e tornam-se apenas vultos brincando com o escuro, bailando graciosamente com o silêncio. Depois, os loucos retomam a sanidade e começam a profetizar o tempo e, qualquer guarda passando na rua, não perde a oportunidade de aquietá-los à força.

Então, os amantes.

O amor fica cheio de vontade e possuído pelo instinto animalesco - uns vorazes, devoram corpos por entre os lençóis da vida; outros mansos, imaginam-se amando, quietos e deliciosamente.

Nos quartos, nos botecos, nas esquinas, nos palacetes, nos cabarés, a noite faz-se presente trocando sensações por denários de ouro, orgulho por mantos frios de solidão, fragilidades por pileques épicos, vida por pedras ilusórias e cintilantes, realidade por sonhos lindos. A noite é cambista mal-paga, cheirando malandragem: torna o sensato em abstrato e, brincando conosco, faz de conta uma porção de coisas.

Quem era, deixa de ser.

Os meninos sem pais, fustigados e serenos, deitam-se no colo da impunidade.

E os artistas - os poetas, os embriagados de arte, os pintores, os músicos -, todos eles tragam a noite, como cigarro fino: aos poucos, saboreando-a, extraindo os seus melhores fragmentos, as melhores idéias para, depois, compor suas obras-primas. À noite, meus caros, a inspiração sai de casa em casa, procurando quem a adote e faça, a partir dela, a mais pura verdade, a mistura certa entre o literário e o sensato.

Noite.

Janela aberta e os ares noturnos entorpecem a alma - os frágeis deixam-se levar pela bricadeira das estrelas e, num lapso lindo, anoitecem completamente.

Noite.

Mágica que ninguém domestica. Que ninguém desvenda.

Noite, eternamente noite.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Sonata noturna [6]

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Partida (6/10)


por Pudim
Foto: Bruna Pimenta


Para quem vem da Namíbia, alcançar a África do Sul é um alívio. Nikole e seus acompanhantes, porém, ainda estavam longe do fim do Kalahari e do começo das florestas subtropicais. A paisagem não sugeria nada positivo, mas os peregrinos, há muito acostumados com o deserto, animavam-se pela esperança de serem resgatados por um transatlântico.
“Para qual praia estamos indo?”, alguém perguntou.
“Aqui não diz nada”, Nikole respondeu, e sugeriu, “vamos tentar as mais famosas”. Todos demonstraram compreensão.
Nikole esperava que a travessia do deserto durasse dois dias, mas durou vinte e cinco. Por sorte, um viajante os indicou, ainda no começo, as referências para localização de oásis. No vigésimo sexto dia, estavam parados no porto da Cidade do Cabo. Escondidos da mesma confusão encontrada em Windhoek, só que em proporções maiores, procuravam um nome específico, em meio à floresta de mastros e à desolação dos barcos abandonados do porto.
“O Nocturnal Sonata não pararia aqui. Estava escrito ‘praias isoladas’, não acredito que ele viria à baía mais movimentada da África do Sul.”
“Segundo meus cálculos, ele viria exatamente aqui. Para abastecer.”
“Eles já devem ter sido alertados sobre a confusão na cidade, não vão aparecer por aqui.”
“Esperem. Vocês já perceberam o quanto é ridículo o que estamos fazendo? Qual é a chance de não termos perdido a viagem do Nocturnal Sonata? Como podemos saber quando ele ia parar aqui? E, enquanto isso, temos um monte de barcos parados a nossa disposição. Vamos pegar um desses barcos e procurar ajuda, ou simplesmente fugir deste continente amaldiçoado!”
Ninguém sabia navegar, mas logo alguns infectados os compeliram facilmente a executar o plano sugerido. Em pouco tempo, a turba contaminada que os observava se transformou em formiguinhas distantes, e o grupo de leigos se transformou em hábeis marinheiros. Eles agora assistiam ao lento desaparecimento da África de diante de seus olhos, com exceção de Nikole. Ela assistia, com binóculos, ao lento aparecimento de duas palavras tão esperadas em um transatlântico.
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