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sábado, 11 de abril de 2009

Sonata norturna [10]

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Sonata (10/10)


Por Pudim (e Tuma)
Foto: Google

1. Ela não sabia, mas em seu ventre estava a salvação da humanidade. Marcela não sabia, mas em seu ventre estava. Não sabia, mas em. Ela não. A Salvação. Marcela não sabia, ainda, pois não havia sido avisada, mas em seu ventre estava a salvação da humanidade. Passeando pelas ruas de Funchal, desligava-se do barulho de seus passos e do murmúrio dos muitos que caminhavam e conversavam cruzando as esquinas, fugindo do calor das casas e abraçando, desesperados, o ar fresco que o mar, indolente, soprava sem pressa. Ela lembrava a noite, quase nove meses atrás, em que seu futuro filhotinho se materializara. Marcela lembrava. Lembrava da noite e de cada outro dia, nove meses vezes os seus dias, em que caminhara pela rua para fugir do calor e encontrar, quem sabe, seu amante perdido. O amante perdido perdido no mar, marinheiro constante, intermitentemente presente junto a ela e ao filho deles, pequeno milagre ocasional, surgido no ventre da moça após um gesto de prazer comum, rápido, como todos os outros haviam sido.

Mas por ali, longe dela, longe de Marcela e seu filho-salvação, chegava à praia a figura espectral de Nikole, seus pulmões ardendo, os cabelos colados ao rosto, suas roupas em farrapos, cambaleando e afundando os pés na areia molhada e fofa. E seus olhos, injetados de água salgada, do mar ou de lágrimas, enrubesciam violentamente, e giravam, cruzando suas miras no ar, buscando o foco do que havia logo a um palmo, ou muitos metros seguindo em frente. Cedeu enfim, o corpo, deixando-se cair na areia e ser tocado pelas ondinhas que avançavam terra adentro. O contato com o chão, com o sólido, logo despertou nele uma sensação de pertencimento, uma lembrança, um arrepio familiar. Mas, junto com o reconhecimento, o arrepio trouxe o delírio. Nikole viu sete figuras reunidas em volta do mundo, e o mundo queimava. As chamas, porém, eram sem brilho, e só faziam afundar seu combustível na escuridão. Ao redor do mundo, no entanto, algo reluzia, e era um ventre. Ao lado de Nikole, a figura pôs as mãos sobre a barriga, e a barriga explodiu em luz, iluminando o planetinha e tirando-o das trevas. Surpresa, Nikole olhou para o rosto da figura, e a figura era uma mulher. Uma mulher grávida.

- Você está bem? – Marcela tentava, desajeitadamente, ajudar Nikole. Em seu transe, a náufraga saíra da praia e começara a andar pelas ruas da cidade, balbuciando, até encontrar, de olhos fechados, a mulher que via dentro de suas pálpebras.

- Sim! – exclamou Nikole, acordando de repente. – E você? Você está tudo bem? Está tudo bem com você...?

- Está, está sim. Mas de onde você veio? Está toda molhada... – disse Marcela, um pouco assustada.

- Eu, eu vim nadando até a praia, estava em um barco, mas as pessoas enlouqueceram e... meu Deus, eu não vou chorar. Você não viu, não sabe o que está acontecendo no mundo?

- Você fala do vírus?

- É, isso, as pessoas tomam a vacina e, meu Deus, elas enlouquecem, entende o que eu digo?

- Entendo, sim, mas por favor, acalme-se...

- Acalme-se, sim, eu não poderia estar mais calma, eu nunca estive tão calma na minha vida, meu Deus, eu consegui, você é a Salvação! – Nikole segurou o braço de Marcela, com delicadeza.
– A salvação de todos nós...

- O que você está dizendo, eu sou a salvação de quem, por quê?

- Porque... eu vi, sim, eu tive uma visão. O mundo estava mergulhado nas trevas, mas uma mulher dava à luz uma grande luz, e essa luz iluminava o mundo. E a mulher... a mulher tinha o seu rosto, a mulher era você!

- Mas como, eu não entendo, o que você está dizendo...
Nikole a interrompeu, soltando o braço de Marcela e jogando-se de joelhos na frente dela, abrindo os braços para implorar e depois juntando as mãos num gesto de súplica e oração. Seus olhos vermelhos se encheram de lágrimas.

- Por favor, só peço que acredite em mim. Eu não sei como isso aconteceu, nem porque, mas eu sei que a salvação da humanidade está em você, e você precisa vir comigo. – Marcela olhou a mulher ajoelhada, com dó, por alguns instantes, receosa de negar ou aceitar aquelas palavras. Como sempre fazia, deixou que o destino decidisse por ela, e fechou os olhos com uma respiração profunda, esperando alguma resposta do solo ou do vento. Sentiu uma pontada na barriga, um chute forte vindo de dentro, e entendeu. Com um sorriso suave, abriu os olhos e, agachando-se, tocou os braços de Nikole com a mãos, olhou-a nos olhos e perguntou:

- Ir com você para onde?

Surpresa, a outra mulher gaguejou por um instante.

- Ah... eu acho que, para as autoridades daqui, alguém que tenha poder para nos ajudar, seja qual for o tipo de ajuda de que precisamos.

- Está bem. Mas hoje só encontraremos alguma autoridade na casa de concertos. Haverá uma
apresentação de uma orquestra estrangeira aqui na ilha, e todas as pessoas importantes vão estar lá.

- Entendo. Pois bem, vamos até lá então, me leve com você, e eu também a levarei.

- Vamos então. Mas primeiro, qual o seu nome.

- Nikole. E o seu?

- Marcela.

Sorrindo, as duas se levantaram. Marcela foi na frente, conduzindo a outra mulher por alguns caminhos mais curtos. Ela se perguntava que espécie de loucura era aquela em que estava envolvida, e que tipo de salvação representaria. Temia que o filho dela estivesse envolvido, como a visão de Nikole dava a entender, e que isso pudesse representar algum perigo para ele. No entanto, não deixava que esses pensamentos a dominassem, e fazia força para confiar no auspício que o chute de seu nenê representara para sua decisão.

Nikole, ao seu lado, acalmava-se lentamente. Mal conseguia entender como chegara até ali, quanto mais o que estava acontecendo com ela e com a mulher que acompanhava. Mas a visão que tivera fora forte o suficiente, parecia ter brotado do fundo de sua alma, um aviso que caminhara pelos elos entre os espíritos e viera parar em sua mente, vindo talvez – assim ela esperava – das almas de seus filhos que haviam partido. Lembrando-se deles mais uma vez, não chorou porém. Pelo contrário, sorriu e olhou para o céu noturno, crente de que dentre as estrelas eles olhavam para ela, e sopravam-lhe, amorosos, conselhos que atravessavam o infinito.

Lado a lado, as duas mulheres pensavam nos próprios filhos, e rezavam em silêncio para que os filhos do presente tivessem um mundo onde viver.

2. O Capitão observa melancólico a ilha se aproximar. De todos que haviam embarcado em seu navio, poucos ainda estavam vivos, e destes, a grande maioria estava enlouquecida, se entregando a orgias entre si e com a comida e a bebida que ainda restavam. Sempre imaginara que fosse ser assim o fim do mundo, as pessoas se entregando aos seus instintos sem medo do que pudesse vir em retribuição, e um ou outro solitário vagando entre os corpos. Ele conseguira controlar parte da tripulação, e era com eles que contava para comandar o barco. Pergunta-se gravemente se é certo levar o navio até a ilha, ou se seria melhor deixar que ele encontre seu fim ali mesmo. No entanto, o seu arraigado senso de dever o compele a seguir o que lhe cabe, e por isso ajeita os comandos para terminar a jornada.

Em seu camarim, o Maestro também pensa em toda a loucura que tomou conta das coisas. Lembra-se de sua indiferença, pouco tempo atrás, quando declamava poesias e deixava que os outros se preocupassem com o fim do mundo. Agora, porém, as palavras de Eliot o assombram, ficam rodando em seu ouvido, dizendo-lhe como o mundo irá acabar. Obstinado, ele toma mais um gole de seu copo e promete a si mesmo que haverá muito estrondo essa noite, que não permitirá ao seu concerto apresentar nada menos que apoteótico.

O Médico tenta se convencer de que é necessário um pouco de distração. Já passa muito tempo recebendo as notícias do mundo, trabalhando em seu laboratório ao mesmo tempo que milhares de outros cientistas pelo mundo, tentando encontrar, nas anotações de Noah Davis e na história da ciência, algum indício que ajude a encontrar a cura para aquele mal que assolava já todos os continentes. Davis se suicidara há dois dias, o que deixou a todos sumamente chocados, e a este Médico especialmente com asco. Como ele pudera desertar da luta tão facilmente? Como pudera negar dessa maneira seu conhecimento e sua inteligência ao resto do mundo? Parecia-lhe patético. Mas, ele tinha certeza, não seria essa noite que chegaria o fim do mundo. Ele poderia tirar algumas horas para apreciar um pouco de música. Não poderia haver problema nenhum nisso.

Já a caminho da sala de concertos, o Líder reflete sobre a situação da ilha. Tem trabalhado incessantemente para impedir a doença de chegar a essas terras, mas há certas coisas que ela não pode contornar. Fechar ou não os portos? Ele não sabe. Há muitos cidadãos dessa terra fora dela, muitos marinheiros e trabalhadores. Deve impedir-lhes de voltar a ver suas casas? Será que a cura chegará a tempo para impedir esse problema? O Líder reza para que sim. Faz uma prece silenciosa, pedindo discernimento, pedindo tempo. Sim, ele reza e pede que o fim do mundo demore ainda a chegar, que ele tenha mais tempo para fazer o que ainda não fez até agora.

Juntas, elas caminham. Nikole vendo as ruas se esvaziando e enchendo num padrão que ela nota sutilmente, seguindo Marcela até onde poderão encontrar algum político, algum cientistas que tenha alguma noção de por que Marcela é importante. Às vezes, Nikole lança um olhar discreto para os lados, um olhar ansioso mas quase imperceptível. Ela não diz nada, mas sabe porque faz aquilo. Espera ver, de relance, ao seu lado, os filhos que perdeu. Já apagou se sua mente há tempos a imagem do fim de seu mundo, de seus filhos convertidos em monstros. Mas as figuras de seus rostos, se seus sorrisos, essas ainda persistem. Ela olha para Marcela, que decidida vai em frente, e sente um amor repentino por aquela moça, um desejo intenso, mas livre de qualquer malícia. Volta então os olhos, de repente, para os lados, crente de que vai pegar os filhos no meio de uma traquinagem, fazendo cócegas em sua mão ou escondendo-se sob sua saia. Mas não há ninguém ali.

E mais a frente, a Salvação medita. Toda a sua vida esteve na ilha, solitária e comum. Então, depois de engravidar, começou a ouvir notícias sobre coisas que aconteciam lá fora. Hoje, porém, o fim do mundo entrou em sua vida, tomou de assalto seus pensamentos. A criança em sua barriga é filha do futuro, ela tem certeza, é uma criança que dará à luz um mundo novo. Não entende como, isso é verdade. Mas os chutes que de tempos em tempos a criança desfere deixam-na cada vez mais decidida a seguir em frente, junto com a moça que apareceu para ela.
Longe dali, vindo do porto, o Assassino anda pelas sombras. Dentro de seu bolso, a mão encontra o metal frio da arma. Ele demorou para tomar a decisão, mas agora não quer mais voltar atrás. O Líder está indeciso, tomado de sentimentos humanos pelos monstros da vacina. Ele vai ajudá-lo a decidir-se. Substitui-se o Líder, e o próximo tomará as medidas certas para proteger a ilha, o Assassino espera. O homem que ele mais ama está no mar, longe, perdido para ele. E agora será assim para sempre. Ele suporta o impulso de chorar, e segue em frente. Seu dever é esse, sempre foi esse. E será cumprido.

3. Ela dançava na chuva, e a chuva se desfazia ao seu redor. Ela carregava em si um traço não nascido do amor. Pessoas passavam, não percebendo que o mundo ruía. Mas sobre suas cabeças eterna inclemente a chuva caía. A batuta bate na madeira, e se ergue, e dança. Ela rola no ar, e vira e revolta e salta, como uma criança. As bocas se preparam, as mãos se postam, e o espírito: contentes. Os instrumentos inspiram e afundam no deserto de sons: ausentes. Mãos trocam cumprimentos e palmas, a última sonata se aproxima, as primeiras notas irrompem, a batuta vibra, a arma se esconde no casaco, os olhos percorrem o cenário, as bocas descontraem-se de assombro, e lá fora, na chuva, ela ainda dança.

4. O palco já estava armado muito antes que os atores pudessem dar-se conta de seus papéis. No palco principal, desenrolar-se-á o clímax da noite: Ali, onde o maestro Bernard Daniel toca sua seleção de sonatas, encontram-se ilustres convidados, como o doutor José Henrique Pádua, médico e cientista renomado, o senhor Antero Diniz, representante do Estado português na Ilha da Madeira, e outros. Periféricos, a rodear a cena central e aproximando-se cada vez mais, há três grupos de atores. De um lado, esgotado física e emocionalmente, o capitão do Nocturnal Sonata vê o porto de Funchal se aproximar cada vez mais e teme por sua própria vida e pela dos habitantes da cidade. De outro lado, alegres e dançantes, Nikole e Marcela estão quase a alcançar a sala de concertos, crentes de que ali encontrarão a resposta para suas perguntas e por conseguinte a salvação do mundo. Finalmente, também se aproximando dali, o personagem mais misterioso, um assassino de nome desconhecido, um marinheiro vivendo em terra firme, desesperado de medo pelo que pode acontecer a si próprio, a um passo de matar o líder, o governador da Ilha, para que o próximo feche os portos e impeça o Mal de chegar até ali.

O destino de cada um já estava traçado, sem que fosse necessário sequer vivê-lo – quanto mais narrá-lo. O que aconteceu, aconteceu e sempre teria acontecido, não poderia não ter acontecido, sempre tomou lugar. A tragédia é visível e se anuncia com rapidez, muitas vezes antes mesmo de aparecer. Desnecessário dizer, mais uma vez, como o medo do homem o cega, como seu mero existir, mesmo com as melhores intenções, já é suficiente para que tudo dê errado e encontre seu fim precipitadamente. Palavrório. Dizê-lo é desnecessário. Basta presenciar, assistir novamente ao que mil vezes já foi visto, ao espetáculo da destruição, à Tragédia, aos fios que se enlaçam lentamente e encontram seu clímax num mesmo exato e precioso instante. Sim, leitor, você adivinhou o que aconteceria. Somente duas opções se colocavam à sua frente, à medida que a história se estreitava, e você sabia qual delas teria a maior chance de acontecer. Você sabia que mais uma vez o que estava sendo dito era “Como os humanos são, não?”, você sabia que era essa a verdade da desolação, a sombra que paira sobre nós desde o início até o fim dos tempos, concomitantemente, inescapável. Sim, você sabia já de antemão o que aconteceria, e agora basta presenciar:

Nikole, puxando Marcela pelo braço, invade a sala de concertos e corre em direção àquele que a outra disse ser o governador, o que poderia fazer algo com a Salvação. No porto, o Nocturnal Sonata acaba de parar, e na ponte o capitão dá seus últimos suspiros, enquanto todos aqueles seres pálidos, aqueles monstros, pulam na água e nadam pateticamente em direção à terra firme. Sentados lado a lado, o médico e o líder ouvem as notas belíssimas, aquela expressão indizível do gênio humano, e lamentam que tudo aquilo esteja fadado ao fim. De seu pedestal, o maestro rege, quase apaticamente, a orquestra, e sente suas forças o abandonando, sua esperança e sua motivação para conduzir aquela explosão de sentimento se esvaindo, evaporando pouco a pouco no ar rarefeito do mundo pálido. Também invasor, o assassino só não faz mais estrondo que as duas mulheres, que mais rápidas que ele jogam-se aos pés do líder, o espantam, chamam a atenção do maestro, interrompem a música, gritam ao médico, elevam as pessoas das cadeiras, assustam o outro invasor e recebem no peito as balas precocemente disparadas em direção ao homem a quem imploravam enquanto as últimas vibrações dos instrumentos silenciando-se apagam-se sepultando toda a esperança e toda a salvação e anunciando por fim a morte do Mundo e de todos os que nele vivem.

FIM
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Um comentário:

João G. Viana/Pudim disse...

Uau.
Só me resta deixar os aplausos ao final da sonata.
Foi um final marcante, forte e muito bem construído. Fiquei imaginando a sonata ao fundo enquanto lia o capítulo. Além disso, se encaixou muito bem na história, fechando-a de uma maneira bem completa.
Parabéns pelo final, Tuma, e obrigado pela ajuda, mais uma vez!