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quinta-feira, 23 de abril de 2009

Um encontro de dois tempos

por Pudim

Era quase Páscoa. Indiferente a isso, Eduardo Cícero evitava qualquer contato social que excedesse as singulares flores do canteirinho de seu tímido quintal. Estava profundamente convencido de que encontrava-se velho demais para agitação, e aquilo era aproveitar a velhice. Não era sem motivo. A vila de Tento, naquela época ainda aspirante a cidade, no máximo oferecia conversas limitadíssimas no único botequim - ainda assim, improvisado -, situado no mórbido centro. E, como típico inventor de obstáculos, o chamado Velho Duci recusava quaisquer sortes de interações com "sujeitos daquela estirpe".
Longe daquele retrocesso da civilização, na urbana e cosmopolita atividade da capital, três indivíduos (um deles incialmente estranho aos demais) estavam prestes a se tornar companheiros de viagem. Tenório e Cecília, recém-célebres no Condado de Stompes, eram os cabeças da caterva. Há tempos a nobreza fora gradativamente ignorada e eventualmente abolida, mas eles ainda eram conhecidos como Conde e Condessa. O terceiro ainda era um desconhecido.
Mais notavelmente, o Alguém se entretinha brincando com anagramas, fingindo-se inconsciente de que manipulava pela raiz o destino de nobres, velhos e desconhecidos pelo mundo. Ansiava pelo repouso que se aproximava. Isto em consideração, dispunha tão harmoniosamente quanto possível as peripécias de seus subordinados. Iniciava-se assim um colóquio noturno inusitado, convergindo inevitavelmente para "um encontro de dois tempos".

Nos tempos de Duci, o mentor

O velho pacato já fora um jovem pachola. Em tempos antigos, cria sinceramente em ser ele mesmo o Escolhido para alguma missão fora de seu conhecimento, mas que iria Mudar O Mundo. Convenientemente, isso foi ao mesmo tempo a causa e o consolo por vários amigos o abandonarem.
Atendo-se a esse sonho foi que descobriu algo, de fato, relevante e real. Aconteceu na biblioteca de sua faculdade, para ele o lugar habitual de seus passeios ociosos. Apropriadamente, encontrava-se descartado por acaso o "Diário de um Esquisito", com desenhos elaborados na capa, em uma das estantes. Ao primeiro vislumbre de seu rico conteúdo, Duci entendeu que aquele era o recado do Destino ao gênio reprimido. Resquícios de histórias quase de todo irrecuperáveis ou extraviadas, perpetuadas em forma de poesia naquele volume, o fizeram compreender que estava fadado a encontrar o produto de uma grande carreira de roubos séculos antes: um tesouro de mudar a História.
Não notando que o que segurava era, de verdade, um diário, o Escolhido começou a exteriorizar sua empolgação. O vexame por uma boa causa durou até o verdadeiro dono reclamar sua propriedade. Após caloroso litígio, Cícero concordou em retornar o seu achado.
A descoberta, no entanto, permaneceu em sua memória. E, por muitos anos, o fez entulhar documentos e possíveis desenvolvimentos para seus planos de ação sobre sua escrivaninha. Talvez por isso sua projeção elevada na carreira seja explicada; talvez por isso seja inexplicável. O fato é que Duci manteve-se lutando para que suas posses pudessem sustentar seus meios. Até o dia em que, subitamente, encontrou prazer na observação e análise de flores domésticas.

Sinto dor em dente, o cuspo em...

A estação estava apinhada; o trem, vazio. Não houve sequer funcionários prontos a carregarem suas malas para o devido compartimento. Fazia sentido: a Estação do Rancho era um destino muito inusitado e pouco requisitado. Cecília o notou e se deu conta de que sua aventura poderia erguer rumores.
"Sem pânico", Tenório a acalmou, "essas celebridades de jornal não duram uma semana. Ninguém mais deve ser capaz de reconhecer nossos rostos."
Tenório estava certo, teoricamente, embora ambos fossem donos de belos e marcantes frontispícios.
Eles não enxergavam o cobrador, que deduziam ser também o maquinista, e se perguntavam se deveriam pagar logo o bilhete. Então foram interrompidos. Um grito indistinto veio de algum ser próximo à plataforma de embarque. Após isso, o casal conseguiu lobrigar um objeto caindo, muito obliquamente, em algum canto escondido dentro do trem. A seguir, veio seu dono perseguindo-o.
"Meu dente! Eu derrubei meu dente de ouro! Onde foi parar? Vocês viram onde foi parar?"
"Não pude ver, foi por ali", respondeu o Conde, apontando algum canto escondido dentro do trem.
Ele e sua esposa não deram mais importância ao fato, até que o trem partiu. Nesse momento,Tenório olhou intrigado para o fundo do trem, que o desconhecido escrutava freneticamente. Este aguardou que o outro virasse sua face novamente à cabine do maquinista, e colocou de volta no bolso a moeda que tinha atirado ali, desejando que o tiro não tivesse sido perceptivelmente oblíquo. Então se levantou, e pôs-se a gritar:
"Pare o trem! Pare! Eu entrei por engano! Eu nem sei para onde esse trem vai!" pedido que, obviamente, não foi atendido. O casal tentou apaziguá-lo, oferecendo-o ajuda e informações. Ele optou por aceitar prontamente, já que era precisamente o que queria, e seu escândalo não estava sendo muito bem interpretado. Seguiram-se seis horas de um entediante e desconfortável sacolejo durante as quais o maquinista continuou sendo uma lenda. Apenas no final da jornada um balconista da própria Estação cobrou as passagens, e assim confirmou-se que aquele era um lugar insólito.
"Vocês têm lugar para ficar aqui?" o desconhecido perguntou, já sequer preocupando-se em soar desesperado.
"Temos", respondeu Tenório, farto de perguntas e notando que ganhara um execrável companheiro de viagem.
"Podem me mostrar onde é?"
O Conde aquiesceu.

Cem por um nos dois de Tento

Pouco do que aconteceu desde a chegada do trio metropolitano ao Rancho de Tento é passível de menção. Era tudo cochichos, boas-vindas, botequim lotado, perguntas e mais perguntas: reações óbvias ao choque entre a gota volátil de chuva e a lagoa perene acostumada à calmaria. Pois então, no quinto dia após a Páscoa, o desconhecido observava quadros de gosto duvidoso, geometricamente dispostos na parede próximo ao seu quarto de hóspede. Notava que no mesmo horário, noite após noite, habituou-se a fazê-lo. E, embora isso o impacientasse, continuava recusando entrar em seu quarto e dormir mais cedo ou se render às festas. Até que, nesse dia, Tenório, Cecília e o dono da hospedaria se trancaram sozinhos no recinto do último.
O hóspede solitário sequer pensou em tentar ouvir a conversa: já tinha o ouvido colado à porta antes que o fizesse. Só ouvia vozes masculinas.
"Cem por um."
"Nos dois?"
"Nos de Tento."

Um tiro no Conde de Stompes

Milhares de faíscas refulgentes a poucos sentímentros do hóspede inesperado. Após elas, A Condessa, em um redingote vermelho, repousa serena próximo a um lago remansoso. Tudo ao redor é tormenta. Ela se levanta para recebê-lo, mas o fosso caótico parece intransponível. A desordem que a cerca, ameias despovoadas que a resguardavam, tudo homogeneiza-se num torvelinho, que se condensa na figura bem vestida do Conde. Este ergue uma Wessel antiga, e sem pestanejar atira no visitante. Mas quem morre é o atirador. Por trás da ruína do Conde, a donzela de vestes rubras segura outra Wessel antiga, esta com fumaça se dissipando acima do cano. Não há mais guardas no arrebalde; a cidade é só deles.

Todos nós de pé: um cornetim

O dobre soou duas vezes na mesma semana; e a empolgação da cidade arrefeceu. Não pelo velho misterioso que desaparecia de suas vidas, ou pelo retirante carismático que cometeu suicídio enquanto ali pousava, mas por tudo isso acontecer justamente na agourenta semana seguinte à Páscoa. Sistematicamente a cada ano, nessa época, o velho Duci fazia ressoar em sua trompa francesa a marcha fúnebre em homenagem a algum velho habitante da cidade que falecia. Agora era a vez dele. A Condessa estava de preto; o Alguém fitava obliquamente seu chapéu de luto. Todos se aprumaram para a melodia lúgubre. Soou o cornetim do músico substituto.

Soou a campainha do trem que os levava de volta à turba.

Não há mais guardas no arrebalde; o tesouro é só deles.

Foto: Guilherme Carnaúba

5 comentários:

Tuma disse...

Cara, sério, parabéns.... tá genial isso. A sua idéia já tinha sido foda desde o começo, mas a execução foi primorosa! Você criou um clima de suspense espetacular, um mistério muito interessante, e esse final é perfeito. Demais, faça mais desses!

Agora... caterva!? Pachola!?! Lobrigar!!?!! Redingote!!!?!!! Remansoso !!?!?!?!!?!?!

De onde vc tirou isso? HUAeuhaeuhaeuhauheuhaehuea

brinks.

abraço

Nós mesmos disse...

LOL
Confesso...palavras como "caterva" e "pachola" foram procuradas no dicionário pra criar um clima de "narrador broto supimpa". Mas "lobrigar" foi uma palavra que eu não consegui substituir; "redingote" é uma palavra que adoro; e, convenhamos, "remansoso" não é uma palavra tão estranha assim...

Aline disse...

Muito bom, gostei bastante do que li, como disseram acima, um clima de mistério muito interessante. Realmente, acho que suspense é o gênero que mais prende o leitor. Parabéns pelo blog. Quantas pessoas fazem parte da equipe?
Vi que vocês têm postagens desde 2008, e tudo mais... Eu já tive alguns blogs, mas nunca consegui mantê-los, por falta de tempo, enfim... Parabéns, e espero que o blog ainda continue por um bom tempo, já está nos Favoritos.
aline_meyer789@hotmail.com

Unknown disse...

Pessoal do "nós mesmos", não vou comentar sobre este post em especial, mas gostaria muito, muito mesmo, de dizer que vocês estão arrasando. Fico muito feliz em ler essas produções.
Saudades!
Bjs.
Ariadne

Juka disse...

Genial, mesmo. Adorei.
Mas o comentário do Tuma disse tudo, ficou muito bom mesmo! O desenvolvimento foi incrível. (:
Parabens!

Aliás, por que MESMO eu nunca soube desse blog? Falha feia do Thomaz e do Stefano não terem me contado!!! Ainda bem que sei fuçar por aí e descobrir coisas boas.
Adorei o blog inteiro. Meus momentos de tédio serão combatidos por aqui, ainda tenho muuuita coisa pra ler, haha. Parabens no geral, adorei o blog.