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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 53


Foto: Bruna Pimenta

por Tuma

Após o almoço, Ariel e Ferdinando voltaram para a sala, onde se sentaram em frente à lareira, novamente, e descansaram, quase dormindo, durante alguns minutos. Haviam comido muito bem, e Ferdinando contara ao anfitrião sobre tudo que acontecera a ele desde que chegara a Miranda. Não pudera lembrar, porém, de alguns detalhes, e excluiu cuidadosamente qualquer menção ao assassinato de Kaspar Hauser. Agora, os dois já estavam calmos e descansados, e puderam continuar a conversa.

- Pois bem, Ferdinando, o que o trouxe até aqui?

- Eu fui enviado por Tito Heisenberg. – a expressão de Ariel não reagiu de maneira nenhuma à menção desse nome.

- Tito Heisenberg? Nunca ouvi falar. E o que esse Tito Heisenberg deseja? – Ferdinando hesitou durante alguns segundos.

- É sobre o The Sandmen. – dessa vez, Ariel sorriu. Fechou os olhos, recostou-se na cadeira, e muito baixo deixava algumas palavras escaparem de seus lábios, como se falasse sozinho.

- The Sandmen, The Sandmen... Um sonho, sem dúvida. Eles eram como espíritos... – algumas palavras Ferdinando não compreendia, mas ficou em silêncio. Algum tempo depois, Ariel abriu os olhos e os voltou para Ferdinando.

- The Sandmen? O que você quer saber sobre eles?

- Tito quer conhecer o segredo da faixa perdida. – respondeu Ferdinando.

- Não, não, não. – interveio Ariel. – Eu perguntei o que você quer saber sobre eles.

- Bem... eu também gostaria de saber isso. – Ariel permaneceu em silêncio, com os olhos grudados em Ferdinando, durante mais um tempo. Então relaxou e começou a falar...

- Essa música ondula junto a mim por sobre as águas... a última música do The Sandmen, a música que o mundo perdeu... bom, antes de tudo eu preciso falar sobre o álbum. Você já ouviu Through a Glass, Darkly, eu presumo?

- Sim, já ouvi sim, várias vezes.

- Bem, então eu vou te contar como ele chegou a ser feito, está bem assim?

- Claro. – respondeu Ferdinando.

- Ótimo. Pois então… muito tempo atrás, Hip e Ike vieram até aqui para mostrar algumas músicas deles. Eu estava muito ocupado na época, então pretendia ouvir um pouco e já dispensá-los: para fora ou para algum produtor. Desde o primeiro acorde, no entanto, eles me fascinaram. Os dois, tocando sozinhos, pois os outros irmãos trabalhavam e não podiam vir até a gravadora, com somente uma guitarra, uma bateria e um microfone, conseguiram agradar meus ouvidos. Resolvi ficar com eles pelo resto da tarde, escutando o que eles tinham. Era só um bando de covers, mas eu fiquei maravilhado, e pedi para eles trazerem algo próprio na próxima vez.

- Sim, eu já tinha ouvido essa parte.

- Certo, pois então. Na próxima vez a banda veio completa, e tocou uma música deles. Após ouvir a primeira vez, mandei pararem todas as gravações e chamei os produtores que estavam no prédio para ouvir aquilo. Todos ficaram espantados. Quando o disco saiu, estourou, vendia muito, e os shows deles eram sublimes, apoteóticos... infelizmente, foram poucos. Eles se apresentaram seis vezes e depois sumiram da face da terra. Só fui encontrá-los anos depois, mortos e enterrados. Nunca ficou esclarecido porque eles haviam sumido daquele jeito. As últimas pessoas que estiveram com eles disseram que eles pareciam normais. Eu, porém, tenho uma espécie de teoria.

Antes de continuar, Ariel se levantou e foi até a janela. Abriu um pouco mais as cortinas e deixou entrar mais luz natural no ambiente. Quando ele voltou, disse:

- Já começou a chover, ouve os pingos?

- Sim...

- Eu adoro o cheiro da chuva.

- Eu também.

- Bom, Ferdinando, preste bem atenção agora. – o rosto de Ariel ficara sério. – O que eu vou te contar foi presenciado por muito poucas pessoas. Eu, junto com um produtor, que já morreu há muitos anos, fomos os únicos a acompanhar de perto todo o processo de gravação do Through a Glass, Darkly, donde se conclui que eu sou a única pessoa viva que conhece a história. Você, a partir de agora, ficará conhecendo-a também. Quero deixar bem claro que isso não é nenhuma espécie de segredo, mas que tipo de uso você fará dessa história é problema seu, certo?

- Certo.

- Vamos lá então. O The Sandmen pretendia fazer uma espécie de épico sobre os sonhos, sobre a ilusão, sobre o mito. A idéia deles era retratar com a música a mente de alguém que mergulha nessa mistura de sonho e fantasia, vive uma história de dramas e alegrias, e ao final descobre a verdade sobre tudo. Assim, eles foram compondo as músicas baseados nessa espécie de enredo. Elas eram dez. A primeira, Good Night, Good Dreams, era como os últimos suspiros e pensamentos de alguém ao adormecer. A segunda, Sunrise, representava um despertar estranho, dentro do próprio sonho, onde tudo é parecido com a realidade, só que mais estranho, mais exagerado, mais delineado. A terceira, Mister Sandman, cover da música clássica, foi colocada no álbum como uma espécie de coisa familiar para se agarrar, mas mesmo essa familiaridade contém uma certa estranheza.

- Interessante, eu nunca havia pensado nas faixas desse modo.

- Bom, a concepção deles para a coisa toda era bem abstrata, então mesmo nas letras não havia uma indicação muito clara do que estava acontecendo, o que só se agrava a medida que o disco progride. A quarta faixa, Anywhere, tinha o objetivo de transmitir uma sensação muito forte de estranhamento, mais do que as anteriores faziam. A quinta faixa, Fields of Afternoon, era uma espécie de descanso, de trégua para o que estava por vir, como uma sesta depois de um almoço pesado e antes de uma tarde ocupada. A sexta canção, Mirrored, era também a mais estranha de todas. Ela mostrava uma espécie de encontro do eu-lírico da letra com seu nêmesis, seu duplo, uma espécie de "gêmeo do mal" dele. Já a sétima, Darkness Falls, era muito tensa, e tinha o intuito de mostrar que, quando as coisas já estão bastante ruins, elas podem piorar ainda mais. Ela era o extremo do extremo de um pesadelo. A oitava, por sua vez, Cry, era insuportavelmente triste, um lamento longo, pesado, soturno, por todas as coisas perdidas. E a nona, finalmente, Over the Stars, representava a última jornada para além do sonho, a última etapa da travessia entre o dormir e o despertar, o último passo necessário para se dar a fim de sair de todo aquele simulacro em que se estava vivendo.

Ferdinando olhava para Ariel espantado.

- Isso tudo que você me disse é espantoso. Eu nunca mais vou escutar aquele álbum da mesma maneira... Mas, e a décima música, a última? E quanto à faixa perdida?

- Ah... sim. Quando o álbum saiu, os mais sensíveis notaram que ele parecia acabar abruptamente, como se faltasse alguma coisa, como se a jornada não estivesse completa. Com o disco, se entrava no sonho e se o percorria, até o quase-fim, mas não se saía dele por completo, não se descobria o seu sentido. Isso, de fato, não acontecia, pois faltava alguma coisa. Faltava a última faixa.

Ferdinando quase prendeu a respiração. Ariel ficou em silêncio por um minuto recuperando o fôlego, e então revelou a Ferdinando todo o segredo.

- Eu vou te falar sobre a última faixa...
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terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 52


Foto: Bruna Pimenta

por Tuma

Prospera não era uma cidade muito complicada. Com facilidade Ferdinando encontrou o caminho da gravadora e as ruas que levavam até lá tinham pouco ou nenhum trânsito. Ainda estava com raiva de Tito, por obrigá-lo a fazer aquilo daquela maneira. Planejava voltar para a cidade e conversar com a polícia sobre isso, acusar o velho de chantagem. Mas antes deveria terminar o serviço para ele. E o próprio Ferdinando, afinal, estava curioso para conhecer a história da faixa perdida.

Ao chegar à rua da gravadora, demorou um pouco para encontrar o lugar. Esperava um edifício moderno e chamativo, mas não havia nada do tipo ali. A rua Murtsdun Garnd (de onde eles tiravam esses nomes!?, meu Deus, de onde eles tiravam esses nomes?) parecia mais um beco, na verdade, e a sede da gravadora era um prédio de três andares e tijolos expostos, cuja única indicação de sua utilidade era dada por uma placa onde se lia, em garranchos estilizados: Gravadora Caliban.

Ferdinando bateu três vezes, mas ninguém respondeu. Repetiu a batida, e novamente só recebeu o silêncio de resposta. Tentou então girar a maçaneta, e a porta finalmente se abriu, num clique. O vestíbulo contrastava fortemente com o exterior do prédio. Era elegante e pintado em cores claras. Um quadro logo à frente da porta mostrava uma ilha no meio do oceano, e abaixo dele um pequeno busto repousava em um aparador. Ferdinando se aproximou e identificou um belo semblante feminino. Na base da escultura, uma escrita quase apagada dizia: "Da mesma matéria...", mas o resto da frase era ilegível.

Uma porta lateral dava numa escada que, devidamente galgada, levava por sua vez ao primeiro andar. O andar parecia vazio. De novo, somente um quadro, retratando dessa vez um imenso navio lutando contra ondas gigantescas. E, sobre o aparador embaixo do quadro, duas pérolas incrustadas num bloco de mármore, com a seguinte inscrição: "Essas são as pérolas que foram seus olhos." No segundo andar, não havia nada: nem quadro, nem aparador, nem inscrição. Finalmente, ele alcançou o terceiro.

Quando saiu da porta da escada, porém, ao invés de encontrar um andar vazio, encontrou uma grande porta dupla de madeira. Um pouco espantado, pois não esperava encontrar mais nada por ali, Ferdinando bateu, três vezes. Pensou ter ouvido uma voz murmurando "Entre", e abriu uma das portas. O gesto revelou a ele uma sala quente e confortável, densamente mobiliada, onde uma lareira ardia. Ferdinando se perguntou por que o fogo estaria aceso se era de manhã, mas não disse nada. As janelas também estavam cobertas por pesadas cortinas, e somente um pouco de luz matinal entrava por uma fresta. Ao lado da fresta, um homem observava o dia.

- Vai chover, ele disse, e se voltou para Ferdinando. Era um homem alto, e tinha um ar antigo, mas seu rosto não era muito marcado pela idade. Seus ombros serviam de fim para o cabelo prata levemente azulado que partia do cocuruto. Novamente, ele falou.

- Pois não comandante, o que desejas?

- Eu queria conversar com você. – respondeu Ferdinando, após pensar um pouco. O homem sorriu.

- Ótimo. Por favor, sente-se. – Ferdinando sentou em uma poltrona em frente à lareira. O homem estendeu a mão para ele. – Muito prazer, eu sou Ariel.

- Ferdinando.

- Ferdinando? Que nome interessante... diga-me Ferdinando, quem é você?

- Eu sou o dono de um mercadinho em Miranda, vim até aqui a serviço de...

- Não, não, não. – interrompeu Ariel. – Quem é você? – Ferdinando permaneceu mudo durante um tempo, perplexo.

- Eu? Eu... – gagueira – Eu sou só um Tolo desmemoriado que teve a sorte de encontrar uma família para amar.

- Hmm, parece interessante. Há quanto tempo você perdeu a memória? – Ferdinando pensou rapidamente.

- Uns treze anos...

- Treze, hmmm, muito bom, e você não se lembra de nada antes disso?

- Não como as pessoas costumam lembrar das coisas... – Ferdinando falava baixo – É tudo muito longínquo, mais um sonho que uma certeza... às vezes tenho lampejos, vejo imagens que não fazem sentido pra mim, mas logo elas vão embora sem me revelar nada.

- Hmmm, de fato – disse Ariel, como se declamasse – parece-me que sua consciência está perdida, nas trevas de antanho e nos abismos do tempo, esperando que alguém venha resgatá-la...

Ferdinando permaneceu em silêncio, enquanto Ariel levantava e caminhava pelo aposento. O homem parou em frente a um quadro, e ficou olhando-o por um longo tempo. A Ferdinando a obra parecia mostrar uma árvore fendida, talvez um carvalho, mas ele não conseguia ver a tela por inteiro. Ariel voltou-se para ele de repente e começou a despejar palavras pela sala.

- Eu conheci um dos abandonados de Mnemósine uma vez, meu caro, um sem-memória. Não sei como ele havia perdido a memória, mas sei que vivia sozinho e isolado em uma cabana na floresta. Um dia eu estava caçando por ali e o encontrei, cochilando, apoiado em uma árvore. O homem rapidamente despertou de seu sono leve e adiantou-se para me cumprimentar. Levou-me até sua casa, lanchamos juntos, conversamos durante um tempo, sem que eu notasse nada de estranho nele. Quando já escurecia, ele me contou de sua condição, e eu fiquei espantado: não fosse a confissão dele, eu nunca imaginaria que ele havia perdido a memória. Comecei então a falar-lhe de minhas viagens, e mostrar alguns souvenires que, por acaso, eu trazia na mochila. Ficamos horas conversando agradavelmente sobre várias partes do mundo, até que eu puxei uma pequena estátua encontrada por mim durante uma viagem à Ásia, e ele entrou em uma espécie de choque. Sentindo-me extremamente culpado, fiquei ali na cabana com ele até que o homem acordasse ou alguém aparecesse. Na noite seguinte, eu comia ao seu lado quando o ouvi sussurrar algumas palavras. Virei-me e notei que, lentamente, ele acordava do choque e se mexia, ao mesmo tempo em que um sorriso se formava sobre seu rosto. Ele mexeu os braços, então, e levou as mãos até o peito. Depois, declamou: "Acorda, querido coração, acorda! Tu dormiste bem, acorda!". Acredite ou não, Ferdinando, mas após ver a estátua, o homem havia tido uma espécie de visão que acabou por restaurar sua memória. Sim, é isso mesmo: após tantos anos, ele estava curado, após tantos anos, ele se lembrava de tudo...

Ferdinando ouviu atento a história de Ariel, mas ao fim dela sentia-se um pouco incomodado. Levantou-se de poltrona para arejar a cabeça e pediu um copo d'água ao anfitrião, o qual foi gentilmente concedido. Depois de beber, ele voltou a falar.

- A estranheza da sua história pôs um peso sobre mim...

- Perdoe-me, Ferdinando. Eu ansiava por ouvir a história de sua vida, que deve soar estranhamente ao ouvido, mas para isso acabei exagerando na dramaticidade. Perdoe-me.

- Não se preocupe, Ariel, eu posso contar a minha história, ao menos a parte que eu me lembro, a você...

- Ah sim, obrigado, mas espere! Já é hora do almoço, acompanhe-me que almoçaremos juntos, e então você me conta tudo certo?

- Claro, claro, eu vou com você.

E foram.
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segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 51


Foto: Bruna Pimenta


por Tuma


Saiu de casa na hora mágica, quando Miranda ainda está tomada por lusco-fusco e névoa, e o passado parece sussurrar pelas ruas. Acordou cedo, pegou suas coisas, a chave do carro, deu um beijo de despedida em Miranda e Sabine e saiu.


A cidade lhe parecia ainda mais secreta aquela amanhã. Observava as casas e as lojas e todas aquelas portas e janelas pareciam estar fechadas há séculos, ou mais: parecia que nunca haviam sido abertas. Ferdinando sabia que dentro de cada casa de Miranda se escondia um segredo, mas aquela espécie de epifania ancestral o deixou deprimido.


Rápido entrou na estrada, e a constante linha reta minou um pouco sua atenção. Seus olhos vagavam pelos arredores, e lhes pareceram familiares alguns trechos. Pegou-se pensando como era engraçado e estranho que nunca houvesse voltado àquela estrada desde o dia do acidente. Mas, afinal, toda sua vida em memória fora engraçada e estranha mesmo: não deu bola.


Passou por um posto moderno e bem construído, onde parou para abastecer, e poucos quilômetros à frente viu de relance um outro posto, velho e arruinado, além de levemente familiar. Pensou ser aquele em que supostamente parara no dia do acidente.


A partir daquele momento, ele começou a prestar mais atenção na estrada, como se buscasse encontrar ali algum fragmento de memória. Agora, ao invés de engraçado e estranho, achava idiota nunca ter ido até ali em busca de alguma lembrança. Essa sensação, porém, logo se desfez, pois além de um leve mal estar nada mais lhe veio à mente.


Após mais alguns minutos, chegou finalmente ao limite de município, e alguns quilômetros adiante entrava em Prospera. A cidade era claramente mais desenvolvida que Miranda, mas compartilhava com esta o peculiar aspecto ancestral e fechado, o semblante pouco hospitaleiro que com certeza contribuía para a solidão daquelas paragens.

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sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Sonata noturna [2]

Sorte grande (2/10)

por Pudim
Foto: Bruna Pimenta



“Quem teve a sorte?”, assim Boris saudou sua esposa na mesma noite.

“Eva Norton, estagiária da CNN de Londres.” A esposa abriu orgulhosamente um sorriso e os braços, logo unidos ao redor do marido.

Ele já imaginava que fosse aquela a resposta. Mesmo assim, não podia esconder a surpresa pelo feito da mulher. Não muito depois de Leo Harris exceder as expectativas de seus professores com a vacina, foi contar a notícia à amiga dos tempos do colegial. A estudante de jornalismo tratou de planejar e apresentar uma imponente matéria sobre a em breve disponível cura e prevenção para uma síndrome que já dividira países. Graças à equipe eficiente da própria emissora, a matéria ficou pronta e foi ao ar em poucas horas. Eva Norton, a estudante de jornalismo, seria recompensada generosamente.

Após os primeiros instantes de comemoração, a esposa de Boris repousou os braços sobre o peitoril da janela, a cabeça sobre os braços e os olhos sobre o quintal. Estava feio.

“Amor, o jardineiro não ia vir hoje?”

“E veio. Ele ficou um bom tempo mexendo nas plantas da sala e, de repente, atendeu o celular e disse que precisava sair para um emergência.”

“Chame de novo amanhã, temos que deixar o jardim bem bonito para viajarmos. No que você pensou?”

Boris testava sua criatividade, buscando escolher um destino não muito insólito para a viagem de comemoração. Observar a lava encontrar o mar no Havaí, visitar cidades arruinadas e selvas na África, conhecer o templo esculpido na pedra, na Jordânia, e Jerusalém na mesma viagem fora uma experiência memorável, mas algo parecido era incogitável. Antes, já até haviam passado as férias como oblatos num templo budista. Era hora de mudar um pouco a rotina anual. Precisava de algo mais confortável.

“Em um transatlântico”, foi o melhor que conseguiu.

“Boa idéia!”, Eva pretendia comentar a escolha, mas não o fez. Lançou-se aliviada no sofá e, não muito tempo depois, começou a recobrar a energia investida em um dos dias mais cansativos de sua vida.

Através do espelho obscuro, capítulo 50


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

Não contou à mulher o motivo de sua viagem. Nunca comentara com ninguém sobre os encontros que tivera com Tito, pois acreditava que, desse modo, poderia fingir que o outro não existia, e assim preservar sua cabeça de lembrar o tempo todo o Chefe.

Voltou cedo para casa. Queria passar bastante tempo com sua mulher e sua filha. Pegou Sabine na escolinha e foi direto para casa, onde Miranda os esperava. Fizeram juntos a janta, comeram, e depois ficaram na sala conversando e vendo um pouco de tevê.

Ferdinando sentia que nunca havia amado ninguém tanto assim. Claro, depois de perder a memória, além das duas só amara Nino, mas aquele era um amor tardio, um amor de ausência. Ele não sabia se a perda da memória apagava também os ecos da paixão, mas em qualquer um dos casos Ferdinando era tomado pela certeza de que nunca, mesmo em sua vida de antes, aquela que não lembrava, fora cativado tanto, e amara tanto, como amava sua esposa e sua filha.

O próprio ato de amar ele aprendera com elas. Primeiro, com Miranda, que ao entrar no mercadinho despertou em Ferdinando um sentimento que ele não soube reconhecer a princípio. Os cabelos castanhos, claros, a claridade da cor dos olhos, o brilho da pele, o recorte do sorriso: tudo era luz em Miranda.

Sabine, também, era objeto de um amor indescritível. Sempre tão alegre, sempre tão doce. Seus dedos, sua mãos, seus braços: Ferdinando perdia-se em tardes sem ação a admirar a suavidade dos traços de sua filha, e nas tardes movimentadas era hipnotizado pela suavidade de suas ações.

Naquela noite, ficaram ali, juntinhos, os três se abraçando e deixando correr entre eles um amor imenso, deixando que o calor de seus corações os leva-se lentamente ao sono em meio à noite fria.
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quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 49


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

Um rosto que observa, soturno. Uma máscara retorcida num esgar de riso e fúria. De começo um ponto luminoso no fim do escuro, que se aproxima e cresce, pouco a pouco, e pára, flutuante, assustador, impiedoso, à exata distância em que se pode ver.

Ferdinando chorara por Nino, e sua mulher o seguira na tristeza. Em poucos dias, porém, a amargura foi tomada pela apatia. A morte ou vida de Nino já não lhe importava. Só o que o assombrava era a permanente acusação pesando sobre seus ombros, o peso do fracasso.

Num dia em que a mulher não iria até o mercado, Ferdinando seguiu sozinho até o local de trabalho, disposto a se cansar o suficiente para chegar em casa à noite e dormir imediatamente. Quando alcançou a rua do armazém, notou um carro preto elegante parado em frente ao estabelecimento, e curioso apertou o passo.

Perto da porta, um homem grande de terno o esperava. Ele trabalhava para o senhor Tito Heisenberg, e tinha ordens de levar Ferdinando ao Chefe. Ferdinando tentou protestar, dizendo que precisava trabalhar, mas o homem disse que a conversa com o Chefe era mais importante.

Resignado, Ferdinando entrou no carro e seguiu por Miranda, atravessando-a quase inteira para chegar à propriedade de Tito. A casa do Chefe ficava em um grande terreno arborizado, e parecia ser muito antiga. Para aliviar a tensão, Ferdinando comentou esse fato ao ser introduzido no aposento em que Tito se encontrava. O Chefe riu-se e respondeu que sim, a casa era muito antiga. Mas logo desviou-se desses circunlóquios e disse por que trouxera Ferdinando até ali.

- Ferdinando – o tom com que ele dizia seu nome sempre o incomodava -, eu preciso de um outro favor seu, um favor que é muito maior do que qualquer um que eu já te pedi.

De fato, Ferdinando já fizera favores para o Chefe, três ou quatro, mas tratava-se sempre de fornecer alimento para as festas que o magnata dava ou, como aconteceu uma vez, fazer contato com uma transportadora de mercadorias.

- Diga, senhor, se eu puder farei o que pedir.

- Se você puder não, Ferdinando, você vai fazer esse favor independente de qualquer coisa.

Ferdinando não respondeu.

- Você conhece uma banda chamada The Sandmen?

A imagem de um disco, dentro de uma caixa, dentro de um armário, esquecido pelos anos e pelo pó, veio à mente de Ferdinando.

- Sim, conheço.

- Então deve saber que existe uma história, a respeito de uma suposta "faixa desaparecida" que não teria entrado no único disco deles e então desapareceu. Eu nunca dei trela para esse tipo de teoria conspiratória aqui em Miranda, mas ao mesmo tempo sempre fui corroído pela curiosidade de conhecer a história dessa música e de ouvi-la.

Tito parecia fazer um discurso para si próprio, como se ignorasse que Ferdinando o ouvia.

- Infelizmente, eu nunca havia tido sucesso em descobrir nada sobre isso. O prédio da gravadora Caliban em Prospera ficou fechado por décadas... mas, poucos dias atrás, o antigo dono da gravadora, que produziu os discos do The Sandmen, voltou para casa.

- Mas onde ele estava esse tempo todo?

- Não sei, ninguém sabe! Minhas investigações foram inúteis, ele desapareceu da face da Terra e só agora voltou a dar as caras.

- Parece interessante senhor, mas o que eu tenho a ver com isso?

- O que você tem a ver com isso, meu caro Ferdinando?

Tito, que até então estivera sentado em sua poltrona, levantou e foi até o convidado.

- Você vai até Prospera, até a sede da gravadora Caliban, conversar com Ariel e descobrir qual foi o fim da faixa perdida!

- O quê? Mas porque eu? Quem é Ariel?

Tito, que até então parecia mais alegre do que Ferdinando jamais o vira, tornou-se de repente sério e sombrio.

- Você gosta demais de perguntas, Ferdinando. Ariel obviamente é o dono da Caliban. E é você obviamente que vai até lá porque obviamente ele só vai revelar o segredo para você!

- Mas...

- Mas o inferno, seu idiota! Se você não lembra nem mesmo de quem é não posso esperar que entenda meus motivos! – Tito começou a se afastar enquanto esbravejava. Deu as costas para Ferdinando e começou a subir a escadaria que levava até o segundo andar. – Amanhã de manhã você parte para Prospera, o homem que o trouxe até aqui te dará o endereço da gravadora. E se até o pôr-do-sol você não tiver chegado até aqui eu saberei que você me traiu e as conseqüências...

As últimas palavras do magnata insano foram engolidas por uma porta se fechando atrás dele. Ferdinando ficou durante algum tempo sozinho na sala, até que o funcionário de Tito veio buscá-lo e o levou embora. Chegou ao mercadinho perto da hora do almoço, e o encontrou aberto e funcionando. Seus funcionários não perguntaram onde ele havia estado, e na verdade nem pareciam ter notado sua ausência. Sem falar com ninguém, Ferdinando atravessou quase correndo o ambiente e trancou-se em sua sala pelo resto da tarde.
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Para ler com pressa.

Foto por Bruna Pimenta.
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por Stefano Manzolli.
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NATAL.
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Depois de um ano quase-inteiro, é natal outra vez. Tem gente que adora, nessa época do ano, olhar para todo o tempo vivido e se convencer que nada valeu a pena. Porém, hoje, façamos diferente: ao analisar o passado, vamos tentar entender que os momentos ruins são como dias nublados... o sol não deixa de raiar, está apenas encoberto - depois de um tempo, com certeza ele irá aparecer. Ou seja, precisamos entender que, para cada pedra, há um salto (uma evolução do que somos) e uma perspectiva nova para encarar o mundo, mesmo que seja difícil enxergá-la em um primeiro momento.
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Por isso, não culpe-se pelos erros, pela pouca fé ou muita tristeza... não culpe-se por nada: acredite que uma magia qualquer de Natal pode apagar as más lembranças e perpetuar as boas. E não importa sua crença, sua origem, entenda que o Natal é tempo para desprender-se dos fardos, alimentar lindas esperanças e renovar a areia da história (para que, daqui oito dias, possamos esboçar outros sonhos nela).
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Ontem, para quem não sabe, foi o Dia Mundial do Perdão. Se você continua bravo com alguém, ainda há tempo de perdoar, pedir desculpas ou esclarecer os pormenores. Só não deixe acumular rancor para o próximo ano, faça desse Natal um momento de reflexão e deseje apenas o bem ao outro, tente ser alegria plena e compartilhe... não perca a oportunidade de ser a pessoa certa, na hora certa.
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Na pior das hipóteses, se nada disso tiver sentido para você, aproveite seu presente de Natal e seja feliz da sua maneira própria.
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Para todos que acompanharam o blog até aqui, um ótimo Natal e muito de tudo que é bom!
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Até outros textos e oportunidades,
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Stefano Manzolli.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 48


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

Começou a preparar-se para ir atrás do irmão. A última carta de Nino, junto às conversas que tiveram quando ainda estavam juntos, deixara algumas indicações de para onde ele iria primeiro. Assim, Ferdinando deixou todas as coisas ajeitadas para a partida. Sua mulher ficaria cuidando do mercadinho, e os vizinhos ajudariam no que fosse necessário durante sua ausência.

Ele partiria dali a três dias. A despeito do pedido de Nino para não ser seguido, Ferdinando sabia ser necessário fazer essa busca. Necessário para ambos. Ferdinando precisava retirar o peso dos ombros, e Nino talvez precisasse saber que alguém se importava com ele, e que Ferdinando poderia sim ser seu irmão, sólido e real como qualquer outro.

Mas então, veio a notícia. Era o último dia de trabalho de Ferdinando no mercadinho, quando um homem entrou pela porta e veio andando, um pouco indeciso, até ele. Ferdinando demorou um pouco para reconhecê-lo, o rosto lhe parecia familiar, mas ele não lembrava de onde o conhecia. Um segundo antes do homem alcançá-lo, Ferdinando o reconheceu, e a identidade foi confirmada pelas palavras do antigo estranho.

- Lembra-se de mim? Sou advogado da família Nápoles.

Sim, Ferdinando se lembrava.

- Tenho algumas notícias ruins para te dar...

Ferdinando se concentrava no movimento dos lábios do advogado, e no som que dali saía.

- O senhor Antonio, ele morreu dois meses atrás.

Os lábios, o som, o mercadinho: de repente tudo ficou embaçado.

- De pneumonia, como o irmão, e na mesma cidadezinha também...

As palavras já começavam a se confundir.

- Pobres os dois, tinham pulmão fraco...

Pobres. Irmãos. Pulmão Fraco.

- O senhor Antonio gastou muito dinheiro em suas jornadas...

Pobres.

- O pouco que sobrou, porém, fica para você, que é o mais perto de um parente legal que ele tinha... assine aqui.

Irmãos.

- Coitado dele, tinha tanta esperança de encontrar o irmão de alguma forma... só Deus sabe o que ele encontrou, antes da pneumonia o levar embora...

Pulmão fraco.

- Adeus, senhor Ferdinando, qualquer coisa me ligue, aqui está meu cartão. Adeus.

O advogado ia embora, Ferdinando ficava. Nino ia embora, definitivamente agora, mas a culpa permanecia. E, não importava o quanto Ferdinando chacoalhasse a cabeça, o olhar acusador de Ernest e o olhar compreensivo de Nino não saíam dali... não mais.
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terça-feira, 23 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 47


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

De um dia para o outro, o espírito de Ferdinando havia sido tomado por uma tormenta. A morte do gato arrastara com rumor a ausência de Nino para dentro de suas preocupações, e essa preocupação esmagou todas as outras. Onde Nino estaria, o que havia sido feito dele, o que ele mesmo fazia de si próprio... essas coisas vinham e revinham aos seus pensamentos, seguidamente, sem cessar.

As últimas palavras de Nino ardiam na mente de Ferdinando, assim como a carta pela qual elas haviam ido até ele ardera tantos anos antes. As palavras saltavam das cinzas daquela lareira primordial e se aglutinavam sobre sua cabeça, formando uma nuvem cada vez mais negra.

De tempos em tempos, a nuvem cedia, e uma tempestade se abatia sobre sua alma, encharcando-a de culpa, ansiedade e medo. Os relâmpagos que ofuscavam sua visão vinham acompanhados de trovões, e os trovões gritavam em seus ouvidos imagens assustadoras.

Nino magro e doente, perdendo aos poucos a vida para a neve que quase o cobria. Nino febril e desesperado, urrando de delírio numa cama desconhecida. Nino quieto e triste, paralisado em uma cadeira por algum acidente grave. Nino de olhos fechados e apagado do mundo, os ossos repousando sete palmos abaixo da terra. E, entre cada uma dessas imagens, o rosto antigo de Ernest Schrödinger o acusando silenciosamente.

Não agüentando mais essa tormenta, Ferdinando recorreu à mulher, e ambos decidiram que seria melhor para ele ir atrás do irmão, descobrir por onde ele teria andado. Ferdinando ainda hesitou durante um tempo, mas logo reconheceu que aquela era sua única chance, seu último recurso, e caso não recorresse a ele seria assombrado pela culpa durante o resto de seus dias.
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segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 46


Foto: Bruna Pimenta

por Tuma

Um dia, o gato desapareceu. Sabine tinha já sete anos, e se afeiçoara muito ao animal. Chorava muito alto, pedindo a presença dele, e Ferdinando, com a ajuda da mulher e de alguns amigos, o procurava pela cidade. Já era noite quando, esgotado de tanto procurar, Ferdinando sentou no quintal com uma garrafa de cerveja para relaxar, e sentiu um cheiro ruim. Conferiu o lixo, o armário de ferramentas, os arbustos, mas não era nada. Então, notou uma caixa, repousando perto da cerca de madeira. Ele não se lembrava daquela caixa estar ali, mas foi decidido até ela ver se era aquilo a fonte do mau cheiro. Quando a abriu, descobriu: o gato, morto, ali dentro. Sem mais dúvidas, ele pensou, agora Sabine choraria muito. E o fez.

Depois, celebraram um velório para o animal, com a presença de amigos da filha e vizinhos. Ferdinando cavou um buraco no quintal, a filha colocou o animal, embrulhado em um lençol, lá dentro, e após fecharem o buraco a menina falou algumas palavras de despedida. Então, Miranda levou as crianças para comer algo, os vizinhos acompanharam-na, e Ferdinando ficou, sozinho e quieto, ao lado da cova.

Lembrava-se bem de como recebera o gato. Ele via, nítidos, o traços do rosto de Ernest Schrödinger se movendo enquanto o velho mordomo falava de como passara o gato para Kaspar Hauser, o mendigo louco. E então, sem aviso, esse mesmo mordomo legara a ele, o pobre tolo sem-memória, Ferdinando, o encargo de cuidar do gato e – isso lhe caiu no estômago com um estrondo – de Nino.

Até então, por todos esses anos em que vivera com sua esposa e sua filha, Ferdinando tratara a ausência de Nino com uma lógica que lhe parecia extremamente coerente. Ele não pudera impedir Nino de ir embora, e o órfão dera ordens explícitas para não ser seguido. Ferdinando não tinha culpa, não havia falhado em sua missão, seu sacrifício. Uma certeza o habitava, a certeza de que Nino estava bem.

O gato morreu, porém, e todas as suas certezas, de uma hora para a outra, se viam varridas, feitas em pó. Que garantias havia de que uma desgraça não houvesse acometido também Nino? Que garantias havia de que ele não estava agora trancado dentro de uma caixa velha, morto e fedendo?

O coração de Ferdinando, que durante tanto tempo flutuara no ar, agora era puxado para a terra por garras, e um peso se abatia sobre todo o seu corpo, deixando-o indefeso e sem saber o que fazer.
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domingo, 21 de dezembro de 2008

Anti-Humor [9]

por Rodrigo Faustini

Teste de Inteligência

1. Você é inteligente?
a) Sim
b) Não.
c) Nim

2. Muitas vezes quando olhamos para nuvens logo reconhecemos objetos e figuras, que na verdade não estão lá, sendo que a própria experiência mostra-se muito subjetiva. Isso se dá por qual motivo?
a) Quando defrontado com uma imagem aparentemente aleatória, incomum e sem estética presente, o cérebro humano, necessitando catalogá-lo por sua racionalidade, logo o compara e assimila à figura mais próxima que possui em sua memória.
b) Ãh, eu vou chutar a alternativa de cima, pois ela possui palavras grandes.
c) Nim

3. “Os romanos chegaram a dominar o mundo, em seu tempo, com seu Império” O que não está tecnicamente correto nessa frase?
a) Os romanos apenas dominavam a maioria do mundo conhecida pelos habitantes europeus na época.
b) O lugar se chama “Roma”, não “romanos”. Coincidentemente, Roma é um anagrama para Amor. Anagrama é um anagrama para Ranamaga, sendo que Ranamaga era o nome de um dos únicos vilarejos sobre qual os Roma não possua domínio na época.
c) Tecnicamente, a letra “,”não existe.

4. Até agora você já notou que no teste existe o padrão de que:
a) as alternativas “a” sempre estão corretas.
b) as alternativas “b” estão sempre corretas.
c) sempre as alternativas “a” ou “b” são as corretas.

5. O menor ângulo dessa figura geométrica é:
a) Você se esqueceu de adicionar a figura. Se tivesse, a resposta seria 30º.
b) 150º, o que faria com que a figura derretesse, pois ela é feita de plástico.
c) Eu não consigo clicar nas alternativas.

6. Essa pergunta é uma pegadinha. Essa pergunta é uma pegadinha?
a) A primeira frase não constitui uma pergunta, pois lhe falta o característico ponto de interrogação (que, coincidentemente, não é composto apenas por um ponto). Porem, se considerarmos as duas frases como se constituíssem uma única indagação, a pegadinha existe, pois a avaliação sintática demonstra que a pergunta não é uma pegadinha, porém como não é uma pergunta, a pegadinha é confirmada pela dupla negativa. Incidentemente, apenas sonhamos que vivemos e, quando sonhamos, é que realmente vivemos, pois estamos em contato com o mundo “real”.
b)Essa alternativa é uma pegadinha?
c) Eu não sei o quê essas palavras, incluído essa e “essa” e “essas”, significam.

7. Certa vez, sonhei que estávamos, minha família e eu, jantando em casa, como sempre. Meu pai me encarava com um olhar penetrante, até que lhe questionei o motivo. Isso pareceu irritá-lo e ele exclamou “Você vive nessa casa há mais de 20 anos e até agora não contribuiu em um centavo para nossa moradia. Nem emprego você tem, seu bostinha! Eu tenho 2 e não reclamo, porque eu amo todos que moram nessa casa, exceto um é claro. Eu até te daria um, mais sei que gente fresca que nem você não conseguiria agüentar nem um dia fazendo o que eu faço banalmente. Você é um fracasso e todos nós nos arrependemos de viver com você!” Até hoje eu não sei o quê esse sonho significa.

8. Que marca de chocolate em pó lhe dá três meses de férias em Paris?
a) Nescau
b) Outra marca
c) Todas as marcas do mundo atualmente em existência exceto Nescau
Grife para descobrir as respostas:
-O quê você respondeu não importa minimamente, pois o teste inteiro era uma pegadinha já que na verdade eu sou um idiota e, portanto não posso confirmar nenhuma inteligência acima da minha. Então, se você não respondeu nada ou nem sabe da existência desse teste você é de inteligência medíocre ou normal. Vá ler um livro pra celebrar.

- Paródias desnecessárias que totalmente desconsideram o material no qual se baseiam (ou, simplesmente “Paródias”): “Tropa de Elite 2: Cães de Guarda”

EXT. FAVELA BOSTA - NOITE

Nascimento está com sua tropa e seu novo parceiro planejando o ataque aos criminosos (pobres)

CAP. NASCIMENTO: Eu NÃO acredito QUE meu NOVO parceiro é um CÃO!

00: [late] [mantenha certeza de que não escutamos um simples “Au-Au” ou tudo parecerá incrivelmente sarcástico]

13: Nós dependemos de vocês dois para eliminar os pobres, quer dizer, criminosos! Nóis cobre o cêis, caveira!

CAP. NASCIMENTO: Pega NO saco, 00! Pega NO saco, 00! [00 avança no saco de um pobre que anda na rua, desatento, que nem todo pobre]

POBRE BOSTA: [berros de dor] Pifiria a vassôra [morre]
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JACK BAUER: Esse é o nosso caso vai embora porra! Você matou todo mundo da quadrilha e da CIA!

CAP. NASCIMENTO: AQUI no BOPE é ASSIM memo! ATIRA primero, VANGLORIZA depois, TORTURA mais, MARGINALIZA então, SHOT massa DEMONSTRANDO a BRUTALIDADE da SITUAÇÃO, FRASE de EFEITO berrada E perguntas DEPOIS! [atira no Chuck Norris; a bandeira do Brasil começa a vibrar no plano de fundo e o hino toca]

JOHN McCAIN (candidato): Você não vai sair dessa livre, seu pivete!

JOHN McCAIN (da série de filmes): Não se preocupem, mais uma seqüência e ele está fodido. Confiem em mim, eu tenho experiência.
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Capitão está dormindo. Sua cama lembra uma cruz e ele está posicionado de forma a parecer Jesus Cristo [isso é um foreshadow da cena final do combate entre o BOPE e Jesus]. Dane-se a crítica social, ninguém da platéia entendeu porra nenhuma do primeiro filme então é hora do pau comer geral.
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sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 45


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

Os anos ao lado de Miranda passaram-se como um sonho. E foram muitos. Ferdinando e Miranda Peregrino Nápoles, os dois amantes, logo se tornaram conhecidos na cidade. A peculiaridade de um desmemoriado herdeiro de uma das mais importantes famílias da cidade casar-se com uma descendente de ciganos atraiu a todos.

Eles, porém, pouca importância davam a isso. Miranda, naturalmente, sabia da condição de Ferdinando, e por diversas vezes passavam horas conversando, tentando encontrar algum jeito de chegar ao passado. Mas era inútil. Com o tempo, acabaram se esquecendo disso, e Ferdinando passou a fingir que sempre morara em Miranda e sempre fora herdeiro dos Nápoles.

No terceiro ano de casados, Lino, dono do armazém, morreu, e Ferdinando comprou o estabelecimento da filha dele, que queria se mudar para outra cidade. Miranda, que trabalhava como enfermeira em um posto de saúde, saiu de seu emprego e foi cuidar, junto ao marido, dos negócios da família.

Já estavam casados há cinco anos quando uma outra estrela surgiu no céu daquele homem que um dia fora o Tolo, o desmemoriado. A estrela se chamava Sabine, um bebê gracioso, radiante, puro, fruto do amor entre Ferdinando e Miranda. Para comemorar a chegada da filha, Ferdinando mobiliou um quarto só para ela, e aproveitou para trocar a
mobília de praticamente toda a casa. As únicas coisas velhas que manteve foram as roupas e a caixa que Nino lhe legara, escondidas, porém, no fundo de um armário.

Naquele tempo, Ferdinando já não mais se preocupava com nada. Tinha duas convicções: que seu passado permaneceria para sempre enterrado, fosse ele qual fosse, e que Nino estava bem em suas viagens, e um dia mandaria lembranças. O gato, Miranda o batizara de Momo, mas ele não demonstrou gostar nem desgostar da alcunha, e estava sempre com a família, os acompanhando para todo lado. Assim, formavam um quarteto perfeito. Ferdinando, Miranda, Sabine e Momo, o quarteto fantástico da cidade.

Pela primeira vez desde que acordara em um carro sem suas memórias, a Ferdinando não faltava nada: agora, ele estava plenamente feliz.
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quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 44


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

Miranda apareceu em sua vida de repente, como um raio de sol que do meio das nuvens cinzentas de um dia nublado surge no céu e ilumina tudo. De tal maneira ela foi importante para ele que após o primeiro dia em que a viu tornou-se uma outra pessoa. Ela apareceu, em todo seu esplendor castanho-claro, de olhos verdes tímidos, no mercadinho. Queria comprar algumas maçãs. Ferdinando, que já a havia notado desde que entrara, usou todo o seu espírito galanteador para chamar a atenção da moça.

- Você gosta mesmo de maçãs hein? – felizmente para ele, ela era um pouco mais espirituosa, e respondeu prontamente.

- Pois é, quero ver se dentro de alguma delas acho meu pecado original junto a um homem do paraíso.

E então, juntos, sorriram. E então, Ferdinando sentiu, juntos para sempre sorririam.

Todos os movimentos que ambos fizeram, os passos bem calculados, mas insuportavelmente imprevisíveis do amor, essas coisas não se há-de dizer. Basta dizer que ambos se apaixonaram, perdidamente, loucamente, daquele jeito que as pessoas se apaixonam, e continuaram sorrindo um para o outro, arrebatados por um sentimento que os unia mas era maior que a simples soma deles dois.

Ela trouxe mais alegria à casa de Ferdinando, trouxe graça e luz, como ele gostava de dizer. Três meses depois de se conhecerem, ela se mudou para lá, e um ano depois estavam casando. Assim, rápido. Assim, quase inconseqüente. Assim, do jeito que acontece nos nossos sonhos.
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quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

O Autor

por Rodrigo Faustini (qualquer coisa, considere o título como deliberadamente sarcástico em sua falta de criatividade)
aaO autor estava sentado em sua cadeira (era personalizada). Ela era acolchoada, de um fino tipo de madeira de nome holandês (a pronúncia deste há tempos havia cometido suicídio em sua memória; lamentável) que exala o mais único dos cheiros; fora manuseada por um genuíno artista, perdido no porão de uma marcenaria nos arredores da cidade, que, naquele móvel banal, engravou parte de seu coração. Aquela cadeira não significava nada. O autor se questionou se suas palavras sofriam do mesmo mal, enquanto digitava cada vez mais delas, suas filhas bastardas. Ele não tinha coragem de associá-las ao seu nome. Rubens Secco era o pai.
aaMarcelo estava em grande perigo no momento. Ele tinha certeza de que o homem de terno e sobrancelhas volumosas que lia desatento um jornal estava naquele trem para matá-lo. A próxima parada era dali a duas horas. Até lá, os constantes olhares investigativos e de suspeita reinariam; o passageiro a seu lado não parava de tossir em seu lenço branco. O autor odiava Marcelo.

-Corajosoaaaaaaaaaaaaaaa-Egocêntrico
-Sagaz aaaaaaaaaaaaaaaaa-Calculista
-Inocenteaaaaaaaaaaaaaa -Infantil
aaMarcelo era o antagonista do autor. Mas como ele o invejava. Por mais imaturas e mesquinhas que fossem suas ações, Marcelo sempre conseguia uma linda mulher como prêmio, para a alegria de seus leitores. E como o autor odiava seus leitores, eternamente confinando-o à sua cadeira. Agora ele está parado, observando enquanto a barrinha de seu Microsoft Word pisca, faminta por letras. Era uma noite fria de Agosto.

aaCarlos não era subjugado esclerose, Carlos podia voar. Olímpio não olhou um segundo para trás após decidir seguir seu sonho. Amanda, armada apenas de sua profissionalidade como repórter e alguns microfones estrategicamente posicionados havia derrubado uma família inteira envolta em corrupção e luxúria. O autor havia sentado bastante tempo em frente de seu computador. O autor muito os invejava. Talvez ele sentisse que as palavras o fizessem companhia.
aa
aaUma brisa de vento passou pela janela entreaberta, forçou seu caminho pela cortina, rodopiou por pura graça, e foi abraçar o rosto do autor, que precisava, gabando-se dos lugares que já havia visitado. Possuía os aromas para prová-lo.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa***
aaO autor aproximou-se de sua estante, pegou uma história em aleatório, e saiu pelo mundo para vivê-la.
aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa***
aaUm sino indicou que o trem estava perto do ponto. Marcelo levantou-se e seguiu para perto da porta. O homem suspeito foi atrás, em passos inaudíveis, mas em respiração ofegante. Ele tinha péssimas notícias para dar. Marcelo segurou levemente em sua pistola, que se encontrava em seu bolso, sem virar. Era uma noite fria de Agosto.

Através do espelho obscuro, capítulo 43


Foto: Bruna Pimenta

por Tuma

Dias depois da conversa com Tito, os inspetores Fellwin e Spassky apareceram em sua casa. Era domingo, e Ferdinando o estava aproveitando quase nu em frente à tevê. Teve de colocar correndo uma camiseta e uma bermuda (ainda usava as mesmas roupas que comprara com Nino nos primeiros dias de sua estada na cidade) e atendeu à porta com uma expressão um pouco assustada.

Os dois policiais ficaram um pouco preocupados de o terem pego em um mau momento, mas Ferdinando os tranqüilizou quanto a isso. Haviam trazido pão, Ferdinando fez café, e então sentaram-se, na cozinha mesmo, para conversar.

- E então Ferdinando, que tem feito da vida? – era o gordo Spassky que falava.

- Trabalhado, basicamente, vou de segunda a sexta no mercadinho do Lino, e aos sábados fico lá de manhã. – ele respondeu.

- E você está contente com essa vida? – agora a pergunta vinha de Fellwin.

Ferdinando pensou um pouco antes de responder.

- Feliz? Sim, creio que sim... tanto quanto se pode estar feliz vivendo com um gato e trabalhando num armazém. Sim, estou satisfeito vivendo assim. Por que pergunta?

- Veja, Ferdinando, eu e o Bingo aqui estávamos pensando em você, no seu caso, de onde você veio, queríamos saber como você está se sentindo com isso, e, bem...

- O que Spassky quer dizer – interrompeu Fellwin. – é que nós descobrimos algumas coisas sobre o caso do acidente com o Hartman. Pelo que você nos disse, era você mesmo que estava no carro com ele. Mas Hartman vivia sozinho, não tinha família, os vizinhos não sabem de ninguém ter estado na casa dele nos dias anteriores ao acidente.

- Sim, e lá no posto, nós encontramos algumas coisas estranhas. Pelo registro do caixa, somente um cliente passou por lá aquele dia. Acreditamos que seja você, mas não fazemos idéia de como você chegou até lá. Não havia nenhum outro carro além do de Hartman, acidentado na estrada. E pra piorar a história, achamos alguns cartuchos de bala no chão...

Os olhos de Ferdinando foram alvejados por imagens desconexas. Alguém atirando com uma submetralhadora, um carro indo embora, o chão empoeirado. Por uma fração de segundo, essas imagens lampejaram, e então sumiram sem deixar rastro ou lembranças.

- Isso, não me diz nada, desculpem... eu não me lembro. – Fellwin deu um tapinha em seu braço.

- Acalme-se. Nós não viemos aqui pra resolver essa questão do Hartman. Viemos pra saber se você não tem interesse em procurar seu passado, em resgatar sua memória...

Ferdinando ficou encarando o chão por um tempo, como se não tivesse ouvido o que Fellwin falara. Depois, deu um longo e enorme suspiro, e disse:

- Claro que eu tenho, eu quero muito saber o que eu esqueci, descobrir de onde eu venho, quem eu sou, meu passado, mas vocês mesmos disseram, nós não temos pistas, não temos nada. Até alguém vir me procurar ou eu me lembrar das coisas espontaneamente, tudo terá de continuar assim...

Dessa vez, Spassky e Fellwin não tinham resposta pronta. Ficaram num silêncio constrangido, terminaram seu café, e despediram-se de Ferdinando com um longo abraço de cada.

Enquanto via os dois desaparecem na esquina, Ferdinando imaginava se o que falara era sincero, se não ia atrás de seu passado porque não tinha por onde começar, ou se, na verdade, não o perseguia pois tinha medo de descobrir a verdade.
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terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Para ler com pressa.

Foto por Bruna Pimenta
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por Stefano Manzolli.
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UMA SENSAÇÃO AGUDA E INCOERENTE.
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Sinto um vazio, mas não chega a ser dor, sacrilégio ou desespero... é apenas uma sensação. Dessas que chegam num piscar de olhos e demoram muito tempo para ir embora. Na verdade, sinto-me vazio e, para isso, sei apenas um infalível remédio: sentar, ler um bom livro, cruzar os braços, refletir bastante, deixar que a vida passe ligeiramente e esperar, esperar, esperar.

Antes das teorias e diversas falsas-lógicas, insisto: a única causa para esse tipo de sentimento é a falta. Uma falta sublime, cheia de eco, totalmente oca, à deriva do tempo. Uma falta digna ser nomeada assim. E por ser tão aguda e incoerente, sussurra pelo vento a pior das perguntas: falta de que?

Se ontem mesmo, a vida era tão bonita e deliciável; o tempo passava arrastado e o pensamento ficava lá longe, junto de um corpo amado. Se ontem mesmo, tudo estava tão bom e eu não precisava de nada mais, como posso sentir, agora, falta de alguma coisa? Hum... talvez, não sei, o motivo seja exatamente o contrário: esse vazio só ocorre por eu não sentir falta.

Se tudo está bem, não há muito o que falar, as queixas perdem a graça e os papos ficam relativamente chatos. Quando tudo vai de vento em popa; quando nos abrigamos no reino da perfeição, não resta nada a almejar e o tédio pode ser um grande aliado. A felicidade não é muito compartilhável e nem tão poética como a dor.

(A dor de amar, de perder, de existir).

É pela dor que construímos a verdadeira alegria - castelo de porcelana belo e frágil. Vivemos para fugir do sofrimento, sendo feliz como criança de galocha pisando em poça de água suja; e para desobstruir a alma dos sentimentos ruins.

Sabe, em dias como esse, quando o vazio torna-se meu conteúdo, entendo que estou feliz... e basta.

Através do espelho obscuro, capítulo 42


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

A vida de Ferdinando tornara-se um constante repetir da rotina. Dia após dia, ele ia ao trabalho, trabalhava, e de lá voltava, quieto e cansado, para tomar um banho, jantar, dar comida para o gato e dormir. Raramente conversava com alguém fora do horário de serviço. No máximo ligava a televisão e ouvia o noticiário ou telefonava para algum restaurante pra pedir pizza. Também passava longos minutos encarando o gato, até sua atenção ser desviada pela tevê. Geralmente, dormia rápido. Às vezes, porém, ficava a noite inteira acordado, pensando em onde estaria Nino e se algum dia ele se lembraria de quem era.

Um sonho freqüente perturbava seus pensamentos: ele, no corpo de um garoto, perseguindo um trio de pessoas. Era sempre a mesma situação, embora em cenários diferentes: uma mulher triste indo atrás de um homem e uma garotinha, e de repente desaparecendo sem deixar pistas. Ele, ou o garoto, então, continuava a ir atrás do homem e da menina, até que eles sumissem em algum tipo de ilha ou lugar inacessível. Ferdinando freqüentemente passava o dia pensando nesse sonho, mas nada além de perplexidade vinha à sua mente.

Num desses dias de sua nova vida, não se sabe qual, posto que eram todos iguais, Ferdinando recebeu uma visita. O mercadinho estava vazio, e ele quase cochilava em uma cadeira, quando ouviu passos ecoando no recinto. Eles eram constantes e cadenciados, como uma marcha, e logo Ferdinando enxergou quem os dava.

Um homem baixo, grisalho e enrugado, vestindo um terno elegante, se aproximava dele. Suas pernas, mesmo quando andava, permaneciam um pouco afastadas, e seu tronco se projetava à frente, deixando os braços pendurados, o que lhe dava um aspecto animalesco. Ferdinando logo reconheceu quem ele era: Tito Heisenberg, o magnata que, diziam as línguas, mandava na cidade.

O velho passou por ele e, com um sinal, o chamou para ir até a sala do dono no mercadinho, atrás do setor de congelados. Ferdinando o seguiu até a sala vazia e encontrou o homem em pé no canto, indicando-lhe uma cadeira vazia em frente à mesa de seu patrão.

- Sente-se. - ele disse. Ferdinando sentou. - Creio que você me conhece? – Ferdinando confirmou com a cabeça. – Bom. – continuou o homem. Ele próprio, então, seguiu até uma outra cadeira, geralmente usada pelo dono do lugar, e sentou-se lá. Uniu as mãos sobre a mesa, aproximou a cadeira e, olhando no fundo dos olhos de Ferdinando, direta e impassivelmente, voltou a falar.

- Ferdinando, tenho algumas coisas muito importantes a te dizer.

- O senhor pode falar, desde que seja breve, não posso deixar a loja sozinha.

- Não se preocupe com isso. – respondeu o homem com um sorriso, que logo sumiu de sua face. – Ninguém entrará lá enquanto estivermos aqui.

Ferdinando ficou incomodado. Sem demonstrar ter tomado nota disso, Tito continuou.

- Como você deve saber, sou conhecido em Miranda como “chefe”, ou alguma outra alcunha que os cidadãos dessa bela cidade insistem em me dar.

- Já ouvi falar disso sim...

- Um outro nome pelo qual eles me chamam é “pai”, e eu te digo, Ferdinando, - ele parecia exagerar na grandiloqüência ao falar o nome de Ferdinando, como se o proclamasse ironicamente. – eu sou um pai generoso.

- Não tenho dúvidas disso... Senhor.

- Ótimo. Por isso vim então hoje dar-lhe as boas vindas oficiais à Miranda, em nome de todos os seus cidadãos.

- Mas por que só agora? – perguntou Ferdinando, impulsivamente. Tito mais uma vez sorriu numa fração de segundo.

- Talvez seja porque você não é exatamente uma personalidade ilustre para receber as boas vindas logo que chega, ou talvez seja por outro motivo. Você não precisa saber. O que você tem de saber, Ferdinando – mais uma vez aquele tom. -, é que eu, como Pai, sou muito consciencioso da vida de meus filhos e de meus deveres como pai...

Súbito, o homem socou a mesa e apontou para Ferdinando, enquanto sua boca se contorcia para proferir as últimas palavras.

- Eu conheço seus segredos, homem, todos eles. E seus desejos e seus medos. Um dia eu vou te pedir um favor, e você vai fazê-lo para mim ou – agora, ele faz um gesto com as mãos, como se amassasse uma folha de papel. – eu vou esmagar tudo isso, de uma só vez.

Ferdinando ficou sem reação. Não sabia se respondia, se brigava, ou se simplesmente levantava e ia embora. Preferiu ficar parado e em silêncio, enquanto Tito se levanta, recompondo-se, e com um gesto se despedia e ia embora.

Naquela noite, ao voltar para casa, Ferdinando olhou para trás constantemente, com medo de estar sendo perseguido. Fugia de cada trecho escuro e a cada segundo caminhava mais rápido. Quando chegou em casa, fechou a porta bem rápido, trancou as janelas, e passou o resto da noite acordado agarrado ao gato, com todas as luzes acesas e a tevê gritando bem alto para espantar os demônios, os fantasmas e as sombras.
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A Última Vela


por João Pedro Paro

Naquela noite tudo se apagou. Nenhuma luz, nenhum movimento, a única cara visível era a do escuro. Ninguém sabia se havia uma vela disponível. E foi aí que o imprevisto aconteceu... Ele estava deitado no chão. Não tinha ninguém, todos haviam o abandonado. Seus pais? Mortos, seus tios? Mortos. A única pessoa que lhe restara era sua avó materna, mas ela havia decidido encontrar o resto da família mais cedo naquele dia. O escuro o cobria e ele decidiu levantar. Ao tentar acender a luz percebeu que essa também o havia abandonado. Notou que ainda usava o terno do enterro e começou a chorar novamente. “Por quê?” Ele se perguntava.

Lembrou-se de sua avó que acendia uma vela toda noite antes de dormir. Será que ela havia tido tempo de fazer isso antes de partir? Ele andou tateando as paredes até chegar ao quarto. Olhou através da porta e viu, em cima de uma velha cômoda, a última vela, a última chama disponível naquela casa. Pegou a vela e voltou à sala. Posicionou a pequena vela na mesinha de centro e largou-se no sofá. Começou a observar as fotos iluminadas pela pequena chama. E viu a foto, aquela foto, a foto do dia em que sua solidão começou.

Era a noite de sua formatura e toda sua família estava reunida para comemorar, haviam decidido alugar uma van para que não tivessem que se preocupar com a embriaguez de um dos motoristas, e foi por causa dessa van na volta da formatura que ele estava só. Era uma noite escura e quase todos, dentro e fora do carro, dormiam, porém outra pessoa que não deveria dormir caiu nos braços de Hipnos: o motorista. A van rolou ribanceira abaixo e ao acordar ele se lembrava de um misto de metal, corpos e fogo. No hospital foi amparado por sua avó, os dois eram os únicos sobreviventes de toda a família.

Pegou a foto nas mãos e passou-a sobre as chamas, assistiu-a queimar. Colocou a foto ainda em chamas no cinzeiro da mesa e, com a vela em mãos, foi até o parapeito da janela. Admirou a escuridão que envolvia a cidade, nenhuma luz, nenhum movimento; observou as nuvens no céu, eram as únicas que ainda sorriam para ele. Viu as formas de seus pais nas nuvens, queria tocá-los, abraçá-los, nem que fosse pela última vez; ao lado deles viu sua avó, apesar de tão pouco tempo já sentia a falta dela. Abaixou-se ao lado da janela e pôs-se a chorar novamente e, antes que percebesse, havia adormecido. Acordou pouco depois, a vela caída incendiara o tapete que, por sua vez, incendiara todo o resto do apartamento. Olhou para as chamas, viu seus parentes no meio delas, dançando, cantando, se divertindo, adentrou no fogo e deixou que este o envolvesse. Depois de algum tempo tudo se apagou. Nenhuma luz, nenhum movimento, a única cara visível era a do escuro.

fotos: Google

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 41


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

Ele demorou um pouco para se adaptar à nova vida. Sua casa era grande, como o prometido, mas parecia parada no tempo. A mobília era velha e gasta e, embora fosse confortável, transmitia uma desagradável sensação de não-pertencimento, como se destoasse do “plano de existência” em que Ferdinando, e a própria casa, viviam.

Durante algum tempo, Ferdinando permaneceu solitário e exilado. Nino lhe deixara algum dinheiro, então ele pôde se dar ao luxo de não trabalhar nos primeiros dias. Ficava trancado em casa quase sempre, com as janelas fechadas e a poeira acumulando nos móveis e em sua pele. Só saía pra comprar comida para si e para o gato.

O gato, Ferdinando só o chamava de gato, como seu dono anterior – não achava necessário nomear-lhe por coisa alguma. Viviam numa estranha sociedade. Frequentemente ficava com o gato no colo o dia todo, até que esse ficasse com fome e fosse até seu pratinho comer. Ferdinando então acordava de sua vegetação, tomava um banho e passava o resto do tempo olhando a rua.

Por vezes, sentia que havia mais alguém além dele na casa. Ouvia risadas e sussurros em sua cabeça, e se metia a procurar de onde vinham, mas não encontrava nada, nem ninguém. Com o tempo, começou a acreditar que o fantasma de Kaspar Hauser o assombrava. Eram os dois, Ferdinando e Hauser, os donos vivo e morto do gato que Schrödinger legara.

Só o que tirava o desmemoriado de seu estado apático eram as visitas ocasionais de alguns conhecidos seus da cidade. Fellwin e Spassky vinham tomar café, às vezes, e um ou outro morador simpático da rua o visitava para ver como ele ia levando a vida.

Finalmente, Ferdinando resolveu fazer alguma coisa. Já fazia quase um mês que Nino partira, e ele percebeu que precisava começar a trabalhar. Conversou com os policiais, perguntou o que eles sugeriam, e acabou sendo contratado para vendedor de um mercadinho que ficava a dois quarteirões de sua casa. Rapidamente, Ferdinando subiu de posto, e dois meses depois de sua chegada a Miranda ele era o conhecido e sério gerente do armazém do bairro.
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domingo, 14 de dezembro de 2008

Para ler com pressa.

por Stefano Manzolli.
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GENTE QUE NÃO SABE AMAR.
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"Nosso amor será eterno!", "Não sei viver sem você!", "Só você me faz feliz!"... quantas vezes não disse frases parecidas com essas ao pé do seu ouvido? Quantas e quantas vezes prometemos ficar lado a lado nos momentos difíceis?
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Ah!, como fui tão tolo de acreditar em... nós! Num futuro bonito e límpido... juntos! Depois de quatrocentos e trinta e dois dias de paixão, você pediu as contas, eu fechei a caderneta e nem sequer sobrou uma pontinha de Bento Santiago em mim.
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Depois de tanto tempo, estou decidido: não acredito mais em juras de amor. Também, não as faço mais - deixo que o amor seja demonstrado através dos carinhos, da falta de ar, do coração pulsando veloz e o brilho indissimulável nos olhos. Deixo o amor germinar lá dentro da alma e transparecer aos poucos em mim - por mim... assim, só assim, as palavras passam a não ter sentido para expressar esse nobre sentimento.
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Para ser bem franco, nós éramos imaturos e não sabíamos amar. Por isso, nosso amor era amor de palavras - frágil e vulnerável às tempestades de areia dessa vida. Numa delas, ele rompeu, morreu, tornou a ser pó debaixo dos tapetes persas de sua tia-avó.
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Ontem, por exemplo, quando nos encontramos na padaria, achei que não suportaria lhe ver com aquele seu novo namoradinho, mas... eu não senti nada. Na-da, nem uma vontade de estar no lugar dele, nem o desejo de ter o meu corpo abraçado ao seu.
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Você me viu primeiro, mas não cumprimentou calorosamente - nem eu. O papo foi padrão e nenhum dos dois se atreveu a perguntar nada além de como ia a vida e o trabalho. Despedi-me rápido (mentindo sobre estar atrasado para o café da manhã), você também não insistiu que eu ficasse. Enquanto partia, fez questão de não me acompanhar com os olhos - deixei por isso mesmo.
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Quando entrei no carro e vi, de longe, os seus lábios colarem aos dele, pude entender a maior das verdades: o amor acaba e os corações, antes aquecidos pelo sentimento frenético, ficam mais frios que fornada de pães franceses.
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Foto por Rapha Abreu

Sonata noturna [1]

por Pudim
Foto: Bruna Pimenta

O último teste (1/10)

“Vamos, benzinho, acabe com eles!” Noah Davis conversava com a lâmina de vidro, apoiado sobre o microscópio. “Leo, coloque no telão.” O assistente ativou a iluminação do microscópio digital, ligou a câmera e estendeu o painel branco apressadamente. Os dois estudantes examinavam emocionados o temível e minúsculo organismo se estrebuchando, colérico, temeroso por sua sobrevivência. E o princípio misterioso despedaçava sua membrana, proteína por proteína, triunfando na batalha ínfima e colossal.

“Conseguimos! Veja só, o HIV está morto! Obrigado, Leo, só você acreditou em mim!” O promissor farmacêutico abraçava energicamente o colega de quarto. “Parabéns, Davis”, ele respondeu, um pouco desconcertado.

“Obrigado, mas ainda falta um último teste. Já testamos em ratos, em macacos, em sangue humano, mas ainda não aplicamos a vacina no seu destino efetivo”, observou, com olhar convidativo. “Você se dispõe?”

“O que pode dar errado?”, compreendeu, com um sorriso ansioso. Talvez fosse sua última chance de ser curado – a doença é imprevisível. De fato, Leo sabia que não tinha nada a perder. Por isso, foi com ânimo que compareceu ao Laboratório Central da faculdade para injetar em si mesmo o específico salvador. E foi com ânimo que esperou uma semana pelos resultados da vacina. Com ânimo fez os exames finais.

E com um ânimo muito singular, e o rosto irrigado de lágrimas, e agradecimentos inefáveis a Noah Davis, e uma determinação inexorável, esfregou o resultado negativo na cara de seus professores.

Anti-Humor [8]

Teorias Cortadas do Especial da Superinteressante sobre Conspirações

-Estive somando os resultados obtidos em tabelas estilo pizza, e, 335 das 336 vezes, consegui o alarmante resultado: 100.
-Poderia o inventor da patente ter feito sua criação apenas para ser o primeiro a registrar a frase “marca registrada” para conseqüentemente ganhar milhões?
- Poderia Michael Jackson ser apenas uma alusão ao Pinóquio? Pense bem, Pinóquio não aceitava quem era, tinha um criador exigente, ficou famoso após juntar-se a um freak show, possuía um nariz “especial” e tinha uma relação perturbada com mentiras, e uma obsessão com “garotinhos de verdade”. Já Michael Jackson não aceitava sua etnia, tinha um pai exigente, ficou famoso após juntar-se a um freak show (também conhecido como Jackson 5), possui um nariz “especial” e tem uma obsessão por “garotinhos de verdade”. Ambos também sempre foram motivos de piadas feitas por estranhos preconceituosos. Peraí...
- Embora muitos acreditem em OVNI’s nunca houve nenhuma prova de que eles são reais.
-Embora muitos acreditem na “Ciência” nunca houve nenhuma prova concreta de que ela é verdadeira. Talvez tudo não passe de muitas, muitas coincidências consecutivas. Atualmente, estou desenvolvendo um método racional para provar essa não existência da “Ciência”, para que todos possam experimentalmente entender essa hipótese.
-Pegue o termo “LAVA-RÁPIDO”. Escreva numa folha de papel LAVA, e, na linha de baixo, RÁPIDO, começando duas casas à esquerda. Leia como em colunas, começando pelo V. Fique perplexo.
-Grife o smilie do MSN. Fique perplexo.
- Embora o Brasil tivesse um presidente na década de 70, não há registros de uma eleição nessa época. (Maçonaria?)
-Haveria uma conspiração por trás do fato de que todas as conspirações já pensadas até hoje estivessem completamente erradas? Poderia ser uma incrível demonstração de marketing histórico por parte de Dan Brown para vender mais livros?
- Nunca foi levada em consideração a possibilidade de que, incapaz ou com preguiça, Deus não inventou o mundo e apenas criou a Bíblia para cobrir qualquer dúvida de que talvez ele não fosse o criador, já que ele era o primeiro a estar lá ninguém tinha tomado responsabilidade até então. De qualquer forma foi um movimento astuto, de grande concentração e cálculo para um ser imaterial.
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- E agora para algo completamente (mais) estúpido:

Workshop de Cinema
Capítulo LV
Os Intrínsecos da Comédia
Parte II -Lançamento de Tortas Através dos Anos

aaUm dos símbolos iniciais da comédia, o lançamento de tortas (ou “arremesso” se você é um acadêmico) fez a população rir por décadas, com sua combinação de creme e o rosto das pessoas surpresas, e de como os dois normalmente não combinam, criando a característica comédia resultante.
bbTudo começou, como a maioria das piadas, de um lugar triste e obscuro: Johnathan Hardy fora sufocado até a morte com uma sacola plástica por seu enteado, num jantar em família. Pouco depois, a polícia chegou para investigar a cena do crime, e re-encenar este, para maior constrangimento dos parentes. Como não havia mais sacolas, uma torta foi usada, sugestão do filho Hardy, agora órfão. Hilaridade se seguiu, e todos riram até chorarem e choraram até rirem, até chorarem de novo por acabarem de ter perdido um ente querido.
ccLogo as piadas envolvendo lançamento de tortas viraram um fenômeno aparecendo na maioria das grandes produções do cinema mudo como: “Abbot & Costello Visitam a Panificadora”, “O Gordo e o Magro na Terra dos Estereótipos Cômicos” e o obscuro filme de Charles Chaplin “O Garoto 2: O Último Órfão Virgem”. Com o sucesso, logo vieram títulos totalmente centrados nas piadas envolvendo o lançamento de tortas, camisetas, canecas, livros e até uma linha própria de bolos e brigadeiros.
ddMas nem sempre os risos eram de diversão. Com a quebra da bolsa em 29, bancar as piadas envolvendo o lançamento de tortas ficou cada vez mais difícil e palhaços descobriram que seu substituto mais barato, o lançamento de sopas, mostrou-se menos engraçado e mais escaldante. Com o mundo mais sério após duas guerras mundiais, algumas tentativas de ampliar o mercado foram tentadas, como no drama “O Diário de Anne Bagel”, passado na época de campos de concentração de Strudels, mas acabaram falando terrivelmente, sendo que os prazos de validade dos atores complicavam terrivelmente o processo.
eeCom a chegada dos anos 60 e dos movimentos sociais, a situação complicou-se um pouco mais. Por quê tortas de chocolate nunca eram utilizadas? Eram as tortas de frutas menos engraçadas por algum motivo específico?
ff“Com o tempo, as coisas mudam, aparentemente” declarou Peach, outro dos atores torta sofrendo do desemprego de massa, cuja última atuação foi em 1999 quando participou de American Pie, do qual não comenta até hoje “Mas é triste ver seus parentes, filhos e amigos todos sucumbindo a antropopiegia na sua frente por não ter dinheiro. Ainda mais, com toda a fome no mundo, o arremesso de tortas deveria ser considerado até mais engraçado do que antes” completou num tom de voz rouco, pedindo para que se lembrem de que, dependendo da quantidade de farinha utilizada, estarão contratando tecnicamente um pão recheado e não ele.

Para mais informações e para saber como ajudar, por favor, visite:
http://www.piecouncil.org/
http://whatscookingamerica.net/History/PieHistory.htm



this iswritteninwhitefornoreasonAnos de Glória

sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 40


Foto: Bruna Pimenta

por Tuma

De fato, Nino não deixou Ferdinando sem nada para continuar. Passou o dia seguinte ao enterro de Ernest trancado em seu quarto, e na outra manhã já não estava mais na casa. Sumira na madrugada, na surdina, sem aviso, mas deixara tudo preparado às suas costas.

Como escrevera na carta – que Ferdinando encontrara em seu próprio quarto ao acordar – um advogado veio resolver as pendências legais. Surpreendentemente, o pobre Nino pensara em tudo. O casarão seria vendido, com praticamente tudo dentro. Algumas coisas porém, seriam legadas a Ferdinando.

Em primeiro lugar, uma identidade. O advogado informou que Nino dera entrada em alguns papéis para registrar Ferdinando como alguém existente. Seu nome seria Ferdinando Peregrino Nápoles, se ele concordasse. Lembrando-se das palavras de Ernest, o desmemoriado sinalizou com a cabeça sua aprovação.

Em segundo lugar, uma caixa. Dentro dela, todas as coisas importantes da família. A vitrola com o disco do The Sandmen, alguns quadros e livros, e as armas da família, que incluíam o brasão, o punhal e uma bandeira.

Em terceiro lugar, uma casa. Nino providenciara para que Ferdinando fosse morar em uma casa espaçosa, agradável e totalmente mobiliada, perto do centro comercial da cidade e longe daquela velha praça, cemitério de lembranças.

Em quarto, e último, lugar, uma outra carta. Nela, Nino pedia a Ferdinando para que não o seguisse, e explicava o motivo de ter dado a ele aquele nome, o significado dos quadros e livros para a família, e o que representava o brasão.

Todas essas coisas, salvo a última, demorariam ainda um bom tempo para serem consumidas pelo fogo. No mesmo dia em que chegou à sua nova casa, no entanto, Ferdinando jogou a carta na lareira, e durante o resto da vida fez um enorme esforço para apagar seu conteúdo da memória.
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quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 39


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

“ Ferdinando, meu novo irmão,

Eu acredito que todas as coisas acontecem por um motivo. Não vejo sentido no acaso e na indiferença: para mim, tudo está interligado, cada coisa que nos acontece é parte de uma cadeia de eventos que nos leva até o nosso destino.

A morte de Ernest, nesse caso, é o último dos eventos de uma cadeia que começou com a sua chegada aqui em Miranda. Naquele dia, quase dez dias atrás, eu pensara em meu irmão o dia todo. Sempre foi comum, para mim, pensar nele, e aquele era um dos dias em que eu pensava mais no assunto.

A tarde caía, e, de repente, você apareceu, cambaleando, conversando com Kaspar Hauser, desmaiando. Então eu e os policiais fomos até você, o ajudamos, o trouxemos até minha casa. Talvez por eu estar pensando o dia todo no meu irmão, achei você muito parecido com ele. Um pouco triste e confuso, acabei passando a noite toda em vigília, ao seu lado.

Depois, dei a você o nome dele, e acabamos nos tornando amigos. Eu achava que aquilo poderia durar para sempre, você fazendo as vezes de meu irmão e tudo o mais. Mas eu estava enganado. Aquilo, por melhor que possa ter sido, era só uma ilusão. A morte de Kaspar Hauser me mostrou isso.

Desde que eu nasci, ele mora na fonte ali em frente. Desde que eu era só uma criança ele povoava minha imaginação com sua aparência e seus mistérios. Nunca cheguei a conversar com ele, nem nada, mas sabia que ele estava ali. E de repente ele morreu.

Assim, de uma hora pra outra, alguém enfiou uma adaga no peito dele e fez aquela figura que me acompanhara a vida toda, que sempre me parecera tão sólida, desaparecer. Desde o primeiro momento que eu soube, fiquei apreensivo: se mesmo algo que era tão sólido, uma presença tão natural como a dele, corria o risco de sumir de repente, imagine as coisas menos sólidas, menos certas.

E, como se não fosse o bastante para a minha cabeça, veio a morte de Ernest. Agora, o ciclo estava completo. Vem você, para me deixar na lembrança, constantemente, a imagem do meu irmão. E então, as duas figuras mais míticas, mais eternas que eu jamais conheci desaparecem. Um deles, aquele que foi como um pai para mim, e o outro, como uma montanha que a gente sempre vê quando abre a janela do quarto pela manhã. Os dois, levados de uma hora para a outra pelo tempo.

Isso, para mim, só pode ser um sinal. Eu estava cultivando uma ilusão, ao achar que você poderia substituir meu irmão. Veja, não é nada contra você, você foi ótimo, você é uma ótima pessoa, mas eu simplesmente não posso continuar com isso. Eu preciso ir atrás de algo mais verdadeiro, mais perene.

Deixo essa carta, porque não tenho coragem de conversar cara a cara com você. Mas é para isso: para dizer que agora eu vou perseguir os resquícios do meu irmão. As pessoas que ele conheceu em suas viagens, os lugares onde ele viveu. Mesmo que ele não esteja mesmo vivo (já não alimento mais essa ilusão, tampouco), eu vou atrás de algo que possa, de alguma maneira, trazê-lo à vida.

Meu advogado vai te procurar, meu novo irmão, eu não vou te deixar sem nada para continuar. E você aprende muito rápido, tenho certeza de que vai construir uma vida aqui, de que vai se tornar um homem bom e respeitado. Se algum dia nos encontrarmos novamente, conversaremos sobre tudo. Se não, reze para que eu encontre a paz.

Com carinho,

Antonio Nápoles.”
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Sonata noturna [0]


por Pudim


Prólogo – Vacinação (0/10)

Da banqueta de espera, Nikole observava mais um filho recuar diante do palitinho agudo ameaçador decidido a ferir-lhe a pele, abrindo caminho para as vias sangüíneas, onde lançaria a cura para a doença aguda ameaçadora que compensava aquela angústia. Aprumou-se e consolou o lamentoso descendente, que concordou em receber a infusão ali, retraído no abraço da mãe. Então tornou ao assento e à sua languidez entediada, incompatível com o dia esperançoso e agitado em Windhoek. E o ritual se repetiu por seis vezes.

*** *** ***

“Vamos, Boris, antes que as filas fiquem longas demais.”

“As filas já estão longas demais. Sempre estão longas demais. Senão não são filas.”

“Que jeito estranho de dizer ‘não estou a fim’. Eu estou indo, não vá deixar para a última hora.”

“Você vai dirigir? Não acabou de beber uísque?”

“O posto é aqui perto, vou a pé.”

“Não demore.”

Assim, com um ligeiro beijo e um aceno desanimado antes de fechar a porta, Boris Norton escapou da infecção aterrorizante que afligiria toda a Terra e especialmente sua esposa nas semanas seguintes.

*** *** ***

Alice rabiscava habilmente suas idéias mais inovadoras num caderno amarrotado miserável, o ombro recostado no de Érica. Esta assistia habilmente às notícias mais inovadoras da CNN International, na verdade praticando seu inglês.

“Será que com essa história de cura para AIDS a ajuda internacional para a África vai continuar?”

“Quê?”, a desenhista disfarçou instintivamente a indiferença com a língua entre os dentes.

“Veja só, o inventor da vacina da AIDS vai tomar a injeção em rede internacional. Não acredito que estou contribuindo com minha audiência para um programa assim”, resmungou, desligando o aparelho e voltando-se para a amiga. Alice, notando a admiração que o esboço concentrava, lançou o caderno em rodopios sobre a cama.

“Meu projeto para a exposição. Vai se chamar ‘Érica’

Ela sorriu.

“Mas que honra. Você vai ao posto agora?”

“Eu vou, você fica; estou esperando minha mãe ligar aqui pra vir me buscar, mas não posso voltar para casa sem a cura milagrosa. Tudo bem?”

Érica demonstrou compreensão com um aceno.

*** *** ***

Durante a travessia de uma avenida das mais apinhadas de Windhoek, Nikole, que até então manejava com certo controle a prole, não conseguia fazer uma das crianças se mover. Impaciente, berrou o nome do filho, e sua voz se sobressaiu às buzinas, vozes e motores ruidosos. O garoto reagiu com agressividade atípica – abocanhou o braço da mãe decididamente, a ponto de espalhar algumas marcas de sangue na roupa dos dois. Foi logo correspondido com um murro violento na bochecha esquerda, e se acalmou. Nikole não teve tempo, no entanto, de fazer o mesmo ao restante das crianças. Apenas apreciava com desespero o espetáculo frenético de cinco pequenos meninos se arrebentando, atirando amostras de sangue estranhamente rosado sobre o asfalto cheio de marcas de recapeamento.

E o semáforo abriu e os carros buzinaram e Nikole não se moveu e os carros avançaram e as pessoas gritaram e os garotos morriam. E a mãe fugiu dos filhos.

Não tinha a noção de que muitas pessoas, em diversos lugares, viviam experiências notavelmente semelhantes.


Foto: Bruna Pimenta

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 38


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

Ernest Schrödinger morreu dormindo. Na terceira noite após a morte de Kaspar Hauser, ele subiu para seu quarto, deitou-se em sua cama e, após algumas horas de sono, morreu de velhice. Embora continuasse forte e esclarecido, o mordomo da família Nápoles já tinha mais de oitenta anos, e, se todos receberam muito tristes a notícia de sua morte, o fizeram sem nenhuma surpresa.

A faxineira chegou à casa pela manhã e, não encontrando o velho mordomo, foi até seu quarto chamá-lo. Como ele não respondesse, abriu a porta e deparou-se com o corpo serenamente estendido, frio e rígido, sobre a cama. Como é de praxe em situações do tipo, ela saiu gritando transtornada pela casa, e avisou a outros dos funcionários da família o que acontecera.

Já após o almoço, teve lugar o velório, que contou com a presença maciça dos mais ilustres moradores de Miranda. Todos vinham homenagear o mordomo, que desde que começara a trabalhar para os Nápoles, três gerações atrás, fora respeitado e admirado por sua inteligência e prontidão, sempre solícito e agradável, embora mantivesse sem cessar a expressão séria de que todos se lembravam bem.

Antonio, o órfão herdeiro, precisou tomar um calmante, e não pôde receber os que chegavam. Ferdinando, então, fez as vezes de anfitrião. Embora também aparentasse estar muito confuso e transtornado, recebeu a todos com palavras simples e breves.

Nesse dia, Ferdinando conheceu muitas das pessoas importantes da cidade. O chefe da polícia, Álvaro Tomasini, veio acompanhado dos inspetores Fellwin e Spassky. Oliver Andronato, dono do teatro, também compareceu. Tito Heisenberg, o magnata, apareceu com alguns de seus funcionários pouco antes da procissão até o cemitério. Ferdinando não prestou muita atenção nele, mas alguns dos presentes poderiam jurar que o velho “chefe da cidade” não tirou os olhos do novo desmemoriado nem por um segundo.
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