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quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Sonata noturna [9]

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Fúria (9/10)


Por Pudim (e Tuma)
Foto: Guilherme Carnaúba

No apartamento silencioso o maestro Bernard Daniel lia poemas proclamando-os a quebrar o silêncio em alta voz que se derramava e ressoava nas paredes criando assim um agradável ambiente de poesia rarefeita misturada ao ar frio do recinto. Sobre a mesa de centro vários livros se espalhavam Leaves of Grass Whitman tão poderoso e as obras completas de Emily Dickinson Robert Frost Yeats Auden Shelley e outros cujos nomes se haviam tornado menos célebres para a posteridade.

Lia com especial interesse poemas de dois livros. No primeiro se lia em grandes letras na capa o nome Macbeth sustentado abaixo pelas letras que indicavam sua autoria e no segundo o genérico título Poems era seguido por um pomposo T.S. Eliot escrito em letras brilhantes.

Se ao ter o primeiro em mãos lhe perguntassem que poema estava lendo ele objetaria e diria ser aquilo uma peça, com personagens e falas, mas uma linguagem tão mágica e idéias tão brilhantes que só o proclamá-los já os fazia ganhar vida. Quanto ao segundo, possuía instantes de estranheza, versos quase espasmos, frases insondáveis que escondendo um mistério irrevogável revelavam uma verdade intransigente. Seus gestos teatrais e voz grave encaixavam perfeitamente com os textos que lia e a solidão que o rodeava.

"Tomorrow and tomorrow and tomorrow,
Creeps in this petty pace from day to day

To the last syllable of recorded time,
And all our yesterdays have lighted fools

The way to dusty death. Out, out, brief candle!

Life's but a walking shadow, a poor player

That struts and frets his hour upon the stage
And then is heard no more: it is a tale

Told by an idiot, full of sound and fury,

Signifying nothing."


[“Amanhã e amanhã e amanhã,
Dia a dia se escoam de mansinho,
Até que chegue, enfim, a última sílaba do livro da memória.
Nossos ontens para os tolos deixam clara
A estrada da empoeirada morte. Fora! apaga-te,candeia transitória!
A vida é apenas uma sombra ambulante, um pobre cômico
Que se empavona e agita por uma hora no palco,
Sem que seja, após, ouvido: é uma história
Contada por um idiota, cheia de som e fúria,
Que nada significa.”]

E então pára, sem fôlego e sem reação para os pensamentos que lhe invadem a mente. Larga o livro e toma o outro, percorrendo suas páginas freneticamente, até encontrar algum indício que contemple sua angústia, as palavras que ele sempre persegue.

“This is the way the world ends

This is the way the world ends
This is the way the world ends
Not with a bang but a whimper.”

[“Assim o mundo termina,
Assim o mundo termina,
Assim o mundo termina.
Não com uma explosão, mas com um suspiro.”]

Após a leitura em êxtase, ele respira e descansa. Seu grande dia está chegando, a apresentação com a orquestra, sonatas de Mozart e Beethoven executadas com maestria para uma platéia ilustre. As notícias do Mal que assoma os que tomam a vacina da AIDS não o preocupam, aquilo não lhe diz respeito. Amanhã toma o avião, e logo estará em Funchal. Amanhã, amanhã, amanhã...

*** *** ***

Dia após dia, surgia um novo alguém tomado pela doença pálida no barco de Nikole, e seu medo de ser a próxima crescia à medida que diminuía o número de pessoas no barco e eles seguiam para o norte.

*** *** ***

Nos porões do Nocturnal Sonata, haviam surgido mais vários infectados. O capitão tentou intervir, mas logo desistiu. Pensava em chegar à Ilha da Madeira – a tripulação e os passageiros haviam recebido com alegria a notícia de que a vacina nem passara por lá antes do surto do Mal – desembarcar os passageiros e manter os outros em quarentena enquanto se comunicava com o governo, mas não deu tempo. Fazendo dois dias que estavam presos lá embaixo, os primeiros descorados surgiram, e atacaram violentamente os que estavam ao redor. Foram parados e mortos, e o capitão os atirou ao mar, mas no dia seguinte surgiram duas vezes mais infectados, e antes da noite todos ali já haviam se matado. A carnificina era horrível, e o capitão lacrou todas as entradas como medida de segurança, além de ficar ele próprio e alguns de seus imediatos isolados temporariamente do resto do navio.

*** *** ***

Leo passa os dias no laboratório, rezando para encontrar alguma esperança. O Mal ainda não o atacou, e isso só o enche mais de culpa. Provetas, ampolas, béqueres dançam de um lado para o outro em suas mãos, o microscópio é requisitado a todo o instante, mas seus experimentos só o levam a becos sem saída, a conclusões inúteis, fechadas em si mesmas.

Hoje mais uma vez ele se isola, e diletantemente retoma suas atividades, um pouco desajeitado. Acordou suando na cama, com dor de cabeça, mas nem cogitou ficar em casa. O laboratório é sua única casa, agora, sua única opção. Mas continuar sua pesquisa está exigindo muito de seu corpo. Seus braços estão doendo, a cabeça parece prestes a explodir, sua visão se turva por um estante, uma proveta escorrega de sua mão e se espatifa no chão, tudo a sua volta escurece e se torna negro...

*** *** ***

Aconteceu de repente. Pessoas caminhando nas ruas, preocupadas com seus afazeres diários, já esquecidas do Mal que a tal vacina da AIDS trouxe para o mundo. Até mesmo na África, dizem os noticiários, o surto de violência foi contido: agora uma investigação será feita, ela é necessária, mas não há pressa. Um dos que andam na rua é um detetive da polícia científica, ele esteve dois dias atrás em contato com corpos dos afetados pelo Mal, para tentar averiguar o que aconteceu com eles, mas agora sua mente passeia livremente sem se apegar a nenhuma preocupação. Quando ele pára no meio fio para atravessar a rua, as listras brancas da faixa de pedestres saltam brilhantes sobre seus olhos. Ele recua um passo, assustado, e subitamente sua cabeça começa a latejar com força. Dá mais um passo para trás e cai no chão, agora já gritando da dor que esmaga seu corpo por dentro. Sua pele começa a embranquecer, seu corpo começar a verter sangue como suor, de sua fraqueza surge sem explicação uma força, um impulso violento, uma fúria que o leva a atacar pessoas desesperadas ao seu redor.

Em todo o mundo, cenas semelhantes acontecem. Os que tiveram contato próximo com os infectados, os pálidos, de uma hora para a outra se tornam como eles, e o Mal se espalha, furioso, destruidor, inclemente, impossível de ser parado. A palidez e a violência, num átimo, se tornam piores do que jamais haviam sido, e avançam com as garras erguidas sobre a pobre humanidade.

*** *** ***

Enquanto acompanhava as terríveis imagens dos massacres e dos combates promovidos pelos pálidos, Noah engatilhou sua arma e a virou de frente para si, disposto a encará-la uma última vez. Com alguma dificuldade, suas mãos tremendo, ele aproximou o cano do revólver de sua boca, e o introduziu ali, o aço frio roçando em seus lábios. Fechou os olhos, apertou-os com força. Não queria ver o que seu gênio criara, não queria ver o que ele destruiria. Puxou o gatilho sem esforço, logo após respirar fundo, e seu fôlego se espalhou pelos ares. A bala encontrou sua espinha no meio do movimento dos pulmões, e os deixou impedidos, incompletos, um movimento que, pela única vez na vida de Noah, foi só de subida. Sem forças para enfrentar sua própria criação, ele recorreu a uma força maior que a sua, e suando frio saltou no abismo.

*** *** ***

Já não era possível diferenciar os vivos, os pálidos e os mortos no barco ensangüentado, e as consciências aninhadas nos corpos se desintegravam lentamente, num processo de fusão com o sangue e o horror. Nikole saltou no mar para fugir de seus agressores, já não sabia se os acusava de pálidos violentos ou vivos impiedosos, e começou a nadar, rápido, braçada após braçada, ofegando e tentando não deixar sua mente derivar e acabar afundando, de pesada. Mordendo a língua para pensar só na dor, ela nadou por muito tempo até encontrar a praia.

Longe dali, Leo gritou, um grito surdo que mais pareceu um pedido de socorro, ou de perdão. A escuridão voltou, e sumiu, e então voltou e sumiu de novo, e então cada vez mais rápido, no instante de uma expiração, para no fim desaparecer definitivamente e dar lugar ao branco final que tomou os olhos de Leo e o jogou para além da morte.
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Um comentário:

Anônimo disse...

Ótimo texto! \o/
A história me lembrou um pouquinho o "Ensaio sobre a Cegueira", mas com outro estilo, outro gênio.
Parabéns para o autor!!

Jéssica (Keka)