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quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Sonata noturna [7]

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Profundezas (7/10)


Por Pudim (e Tuma)
Foto: Bruna Pimenta


Notícias da África chegavam a todo instante, os passageiros sabiam, mas pouco se preocupavam, para que ligar para o continente amaldiçoado? Já há tantos séculos eles estavam esmigalhados sob os pés de suas sinas que esse talvez fosse o último evento que restava para acabar de destruí-los e dar lugar a novos usos para a terra ora amaldiçoada por sua presença.
Ainda assim, eles precisavam saber. Havia alguém no navio que recebera a vacina ou...? Não, se afastaram das costas do continente, poderiam parar no Brasil para abastecer, lá haveria segurança. Assim como em todo o mundo civilizado. Sim, as nações do pôr-do-sol haveriam de conter esse horrível ato certamente terrorista perpetrado pela tal vacina maldita. O último suspiro numa dose e agulhada. Brasil estaria bem, abastecer, não muito mais, o navio é ótimo, o que era realmente importante... isso, continuar a viagem, atravessar o Atlântico, abastecer no Brasil, sair de lá bem rápido, passear pelo Caribe e, ai, aproveitar um esplêndido concerto em Funchal.
Mas ainda assim, eles queriam saber. Havia alguém no navio que recebera a vacina ou...?

*** *** ***

Noah tentava encarar seu fracasso como encarava o copo de bebida à sua frente. A imagem do vírus se espedaçando parecia-lhe curiosamente irônica agora, uma imagem definitiva do que ele trouxera para o mundo. Leo tentara convencê-lo de que houvera alguma modificação, de que alguém sabotara a vacinação, mas era inútil. Ele se lançara numa busca obsessiva para descobrir porque a vacina estava fazendo aquilo com as pessoas, transformando-as lentamente em bolhas quase sem vida, por vezes violentas, enquanto aqueles à sua volta fugiam horrorizados. Mas era inútil. Noah fracassara, e sabia disso. Agora teria de se explicar em frente ao mundo, quando viessem cobrar dele a culpa por aquilo tudo, quando viessem julgá-lo. Isso se ainda houvesse mundo após aquele surto de palidez e violência passar. Mas Noah não acreditava que fosse passar. Sua experiência lhe ensinara que a palidez e a violência eram como a entropia: recrudescentes, inexoráveis. E o fato de que ele trouxera ao mundo aquele juízo era mais insuportável que qualquer julgamento. Procurando dessa vez retirar de sua mente a culpa cada vez maior que ali se desenhava, olhou de novo para o copo, e o levantou com seus rodamoinhos, e deixou sua mente afundar ali completamente.

*** *** ***

Boris saía pouco de sua cabine, sempre sozinho, mas as passagens não eram para dois? Alguns passageiros que ele conhecera entre drinques no bar começaram a perguntar “Mas e sua mulher, está viajando com ela não?” “Ela não está se sentindo muito bem.” “Leve-a à enfermaria do navio.” “Acho melhor não, ela prefere tratamentos aos quais está acostumada, mais caseiros sabe? Coisa da mãe...” Rápido os conhecidos voltavam os olhos para o copo e bebiam de um só gole buscando tirar da cabeça as desconfianças que pareciam rodopiar cada vez mais fortes à frente de seus olhos.
E na cabine, Eva Norton, sua mulher, empalidecia pouco a pouco.

*** *** ***

Os pais de Érica, por sua vez, ficavam fora da cabine o tempo todo. Haviam arrastado a filha para aquela viagem, totalmente contra a vontade da voluntariosa menina, ainda chorando pela morte da amiga. Eles tinham medo. Quando alguém perguntava dela, desconversavam. Às vezes traziam-na para fora, para mostrar aos outros a filha branca e apática que tinham, toda coberta de badulaques que só faziam assomar ainda mais sua brancura, em contraste. As pessoas da piscina começaram a cochichar, os pais ficavam constrangidos pelo silêncio da menina, envergonhados de se mostrarem tão incapazes em público, e horrorizados de medo de alguém desconfiar que ela, a filhinha tão querida, poderia estar com aquela doença macabra, a doença que deixava tudo branco, transparente, até desaparecer.

*** *** ***

Nikole viu o transatlântico passar ao longe com seu binóculo e avisou ao resto das pessoas do barco. Alguns quiseram ver com os próprios olhos, a nu só enxergavam um borrão no horizonte, e o binóculo passou por várias mãos até escorregar entre braços que tentavam alcançá-lo impacientes e cair no mar. Agora o navio não era mais visível. A mulher se afastou da amurada e foi se encostar na parede da pequena cabine. O barco era de um tamanho médio, mas tornara-se minúsculo para todas aquelas pessoas. Um homem grande sentou ao lado de Nikole, e com ele uma mulher magra, três garotas e um casal de velhos. A mulher se apoiava no ombro do marido, como dormindo. Nikole, apertada pelo acúmulo de pessoas à sua volta, olhava aquela cena e se lembrava de seu marido, morto recentemente. E dos filhos, empalidecendo, se atacando e sangrando. Já superara em parte o choque inicial, mas os olhos e os dentes de suas crianças, a agulha lhes furando a pele, as mãozinhas se agarrando, a pele sendo rasgada... mordeu os lábios para não chorar, mas acabou derramando algumas lágrimas, que logo secou com o antebraço, não querendo chamar atenção.
Tornou a olhar para o casal de velhos, eles pareciam tão carinhosos um com o outro. E sol forte refletia na água e tornava tudo difuso, o toldo que cobria a maior parte do barco parecia gasoso, as pessoas andando pelo convés eram só sombras, o suor de todos que se espremiam evaporava rapidamente e espalhava um odor forte por todo o barco. Palavras ditas e gritadas se confundiam com o barulho das ondas, a languidez tomava os sentidos de assalto, a tristeza demolia as últimas tentativas de resistência, o horror ocupava os corações e mentes vazios... a sombra de um pássaro grande veio do céu e cobriu todos com seu olhar, esquadrinhou as cabeças mais inóspitas, os erros mais férteis, e fez ninhos atrás das orelhas de cada um, roçando de leve as peles com suas penas e fazendo cócegas...
Nikole despertou de seu transe e viu o homem grande que se sentara ao seu lado gritar com o casal se velhos, outros se juntaram a ele, uma das garotas apontou para as outras duas que se sentavam a seu lado, ouviu-se imprecações e acusações, pessoas que estavam sentadas se levantaram, pessoas que estavam deitadas permaneceram assim, braços se ergueram, homens mulheres e crianças descorantes clamaram por piedade de joelhos, as pessoas deitadas continuavam deitadas, quando na verdade estavam mortas, e assim todos foram agarrados e com barulho e ranger de dentes jogados ao mar e espancados com os remos.

*** *** ***

Eles iam descobrir mesmo, mais cedo ou mais tarde, disse o pai à mãe horrorizada. Eu não agüentei o olhar de desconfiança deles sobre mim, eu não agüentei me perdoe... palavras interrompidas por um sonoro tapa continuaram jorrando junto ao choro mas foram logo caladas pelo estrépito de passos e gritos que irromperam junto à cabine. A mulher tentava tirar a filha da inércia, inutilmente, e o pai continuava lamentando e chorando debilmente. Não demorou e a porta foi arrombada a mãe clamava por piedade mas a empurraram e ela caiu e desmaiou enquanto o marido observava tudo com os olhos arregalados.
Em várias cabines pelo navio, acontecia o mesmo. O primeiro caso confirmado de palidez gerou uma onda de histeria que acabou por formar vários grupos de patrulha a rondar pelos corredores e arrombar portas e revistar quartos e fazer interrogatórios para depois agarrar os contaminados e levá-los para fora. Alguns corados tentavam interceder a favor dos doentes, o comandante pensou em tentar conter o surto com armas, mas parte da tripulação se havia voltado contra os descorados. Sugeriram isolamento, quarentena, cárcere, abandono em botes, mas o desespero falava mais alto não podiam prescindir dos botes não podiam arriscar uma fuga não podiam arriscar a contaminação. O não-preocupar-se hipócrita dera lugar definitivamente à paranóia que se havia desenvolvido silenciosamente no interior das almas de todos.
Durante a noite os primeiros foram jogados ao mar, e nos dias seguintes muitos mais encontraram seu fim nas águas geladas.

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O mar, como sempre fizera, recebeu indiferente seus mortos, e cada corpo e consciência que quebrava sua superfície era engolido por um torvelinho e afundava até as profundezas.
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Um comentário:

João G. Viana/Pudim disse...

Grande! Muito bom, Tuma, impressionante. Estou curiosissimo.