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segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

Através do espelho obscuro, capítulo 56


Foto: Guilherme Carnaúba

por Tuma

O choque impediu qualquer racionalização. A estranheza de ouvir a própria morte no rádio não suplantava o medo desesperado de ouvir a morte da mulher e da filha. Quase batera ao ouvir aquelas palavras, mas imediatamente recobrara a velocidade e voara pela estrada até chegar em Miranda. Felizmente as ruas da cidade estavam vazias devido à tempestade e ele pôde entrar em várias contramãos e andar sobre várias calçadas para chegar mais rápido em casa.

Seu peito já doía antes mesmo de ele avistar a casa, mas ao saltar do carro e encarar as cinzas molhadas e os destroços, sua única reação foi vomitar. Não sobrara nada. Uma fita da polícia cercava a casa, mas já estava quase toda destroçada pelo vento. Ele se aproximou, e entrou correndo pelo quintal. A grama estava toda queimada, e os anões de jardim pareciam pedaços de carvão.

Passou pelas paredes derribadas que um dia haviam sido os limites de sua casa. A água já apagava no chão o traçado de giz de três corpos, um deles pequeno e frágil. Mas não apagava a dor que aquele homem encharcado sentia. Aquilo não poderia ser lavado por nada.

Resistindo para não chorar, Ferdinando tentou imaginar de quem seria o terceiro contorno de giz, quem teria estado na casa, mas não conseguia pensar em nada. Só o que ele pensava era em como Tito Heisenberg era louco e como ele era capaz de fazer qualquer coisa. Ele pensava em como o maldito trouxera alguém e matara ali junto com Miranda e Sabine, para depois botar fogo em tudo, a fim de despistar a polícia.

O raciocínio de Ferdinando estava turvo, mas ele sabia que não havia motivo nenhum na terra para Tito fazer aquilo. Ele só se atrasara, meu Deus, que espécie de mentalidade reagiria desse jeito? Ódio, perplexidade, tristeza, desespero, dor, cada gota de chuva que batia contra a cabeça de Ferdinando vinha carregada de todas essas coisas, e escorria junto com elas enquanto a alma daquele homem, daquele pobre Tolo desmemoriado, vazava e ia murchando pouco a pouco.

Já era noite plena sobre as nuvens, e Ferdinando continuava ajoelhado sobre o túmulo de sua vida. Ali jazia tudo que ele construíra durante treze anos, a partir do que Nino lhe deixara. Mas Nino se fora, Ernest se fora, o gato se fora... Kaspar Hauser se fora, há muito tempo atrás... e agora iam Sabine, Miranda, e um anônimo que adotara seu nome. E, nesse tempo todo, ele nunca conseguira recuperar sua memória, nunca conseguira recuperar sua identidade.

As palavras de Nino, mais uma vez, o assombravam. "Eu achava que aquilo poderia durar para sempre, você fazendo as vezes de meu irmão e tudo o mais. Mas eu estava enganado. Aquilo, por melhor que possa ter sido, era só uma ilusão." E assombravam. "Assim, de uma hora pra outra, alguém enfiou uma adaga no peito dele e fez aquela figura que me acompanhara a vida toda, que sempre me parecera tão sólida, desaparecer." E assombravam."Eu preciso ir atrás de algo mais verdadeiro, mais perene."

Depois de tanto tempo, ele compreendia finalmente o sentido daquelas palavras. Toda a vida de Ferdinando Peregrino Nápoles fora uma ilusão. O Tolo chegara, apagado e vazio, em Miranda, e então havia deixado construírem sobre ele algo que não era ele. Se tornara assassino de Hauser, irmão de Nino, herdeiro dos Nápoles e de Ernest, dono do armazém, marido de Miranda, pai de Sabine. Mas aquilo não era ele. Não ele, de verdade, mas só uma ilusão. E agora, essa ilusão estava terminada. Todos os feiticeiros e gnomos que haviam tomado parte dela estavam mortos. Todos. Nino, Ernest, Hauser, Momo, Miranda, Sabine. Ferdinando Peregrino Nápoles estava morto. Havia sido noticiado no jornal. Haviam encontrado seu corpo e o de sua família queimados em um incêndio acidental aquele dia.

Agora, ele estava limpo novamente. O Tolo regredira ao princípio, apagado e vazio. Era só uma folha em branco, um saco vazio, um vagante. Estava pronto para começar uma nova vida, prontíssimo! Mas faltava ainda uma coisa. Antes, precisava terminar o serviço da última. Antes, precisava se desligar completamente do que havia sido por treze anos. Antes, precisava matar Tito Heisenberg.
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