INFORMATIVOS:

1) Agora dá para ler as postagens do blog por Categoria. Basta clicar no tema do seu interesse no menu ao lado e gastar horas lendo bons textos. Caso queira, em Home poderá ler todos os posts sem nenhuma interrupção.

2) Os comentários estão liberados, agora! Caso você não tenha uma conta Google, comente na opção Anônimo, mas não se esqueça de assinar.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 52


Foto: Bruna Pimenta

por Tuma

Prospera não era uma cidade muito complicada. Com facilidade Ferdinando encontrou o caminho da gravadora e as ruas que levavam até lá tinham pouco ou nenhum trânsito. Ainda estava com raiva de Tito, por obrigá-lo a fazer aquilo daquela maneira. Planejava voltar para a cidade e conversar com a polícia sobre isso, acusar o velho de chantagem. Mas antes deveria terminar o serviço para ele. E o próprio Ferdinando, afinal, estava curioso para conhecer a história da faixa perdida.

Ao chegar à rua da gravadora, demorou um pouco para encontrar o lugar. Esperava um edifício moderno e chamativo, mas não havia nada do tipo ali. A rua Murtsdun Garnd (de onde eles tiravam esses nomes!?, meu Deus, de onde eles tiravam esses nomes?) parecia mais um beco, na verdade, e a sede da gravadora era um prédio de três andares e tijolos expostos, cuja única indicação de sua utilidade era dada por uma placa onde se lia, em garranchos estilizados: Gravadora Caliban.

Ferdinando bateu três vezes, mas ninguém respondeu. Repetiu a batida, e novamente só recebeu o silêncio de resposta. Tentou então girar a maçaneta, e a porta finalmente se abriu, num clique. O vestíbulo contrastava fortemente com o exterior do prédio. Era elegante e pintado em cores claras. Um quadro logo à frente da porta mostrava uma ilha no meio do oceano, e abaixo dele um pequeno busto repousava em um aparador. Ferdinando se aproximou e identificou um belo semblante feminino. Na base da escultura, uma escrita quase apagada dizia: "Da mesma matéria...", mas o resto da frase era ilegível.

Uma porta lateral dava numa escada que, devidamente galgada, levava por sua vez ao primeiro andar. O andar parecia vazio. De novo, somente um quadro, retratando dessa vez um imenso navio lutando contra ondas gigantescas. E, sobre o aparador embaixo do quadro, duas pérolas incrustadas num bloco de mármore, com a seguinte inscrição: "Essas são as pérolas que foram seus olhos." No segundo andar, não havia nada: nem quadro, nem aparador, nem inscrição. Finalmente, ele alcançou o terceiro.

Quando saiu da porta da escada, porém, ao invés de encontrar um andar vazio, encontrou uma grande porta dupla de madeira. Um pouco espantado, pois não esperava encontrar mais nada por ali, Ferdinando bateu, três vezes. Pensou ter ouvido uma voz murmurando "Entre", e abriu uma das portas. O gesto revelou a ele uma sala quente e confortável, densamente mobiliada, onde uma lareira ardia. Ferdinando se perguntou por que o fogo estaria aceso se era de manhã, mas não disse nada. As janelas também estavam cobertas por pesadas cortinas, e somente um pouco de luz matinal entrava por uma fresta. Ao lado da fresta, um homem observava o dia.

- Vai chover, ele disse, e se voltou para Ferdinando. Era um homem alto, e tinha um ar antigo, mas seu rosto não era muito marcado pela idade. Seus ombros serviam de fim para o cabelo prata levemente azulado que partia do cocuruto. Novamente, ele falou.

- Pois não comandante, o que desejas?

- Eu queria conversar com você. – respondeu Ferdinando, após pensar um pouco. O homem sorriu.

- Ótimo. Por favor, sente-se. – Ferdinando sentou em uma poltrona em frente à lareira. O homem estendeu a mão para ele. – Muito prazer, eu sou Ariel.

- Ferdinando.

- Ferdinando? Que nome interessante... diga-me Ferdinando, quem é você?

- Eu sou o dono de um mercadinho em Miranda, vim até aqui a serviço de...

- Não, não, não. – interrompeu Ariel. – Quem é você? – Ferdinando permaneceu mudo durante um tempo, perplexo.

- Eu? Eu... – gagueira – Eu sou só um Tolo desmemoriado que teve a sorte de encontrar uma família para amar.

- Hmm, parece interessante. Há quanto tempo você perdeu a memória? – Ferdinando pensou rapidamente.

- Uns treze anos...

- Treze, hmmm, muito bom, e você não se lembra de nada antes disso?

- Não como as pessoas costumam lembrar das coisas... – Ferdinando falava baixo – É tudo muito longínquo, mais um sonho que uma certeza... às vezes tenho lampejos, vejo imagens que não fazem sentido pra mim, mas logo elas vão embora sem me revelar nada.

- Hmmm, de fato – disse Ariel, como se declamasse – parece-me que sua consciência está perdida, nas trevas de antanho e nos abismos do tempo, esperando que alguém venha resgatá-la...

Ferdinando permaneceu em silêncio, enquanto Ariel levantava e caminhava pelo aposento. O homem parou em frente a um quadro, e ficou olhando-o por um longo tempo. A Ferdinando a obra parecia mostrar uma árvore fendida, talvez um carvalho, mas ele não conseguia ver a tela por inteiro. Ariel voltou-se para ele de repente e começou a despejar palavras pela sala.

- Eu conheci um dos abandonados de Mnemósine uma vez, meu caro, um sem-memória. Não sei como ele havia perdido a memória, mas sei que vivia sozinho e isolado em uma cabana na floresta. Um dia eu estava caçando por ali e o encontrei, cochilando, apoiado em uma árvore. O homem rapidamente despertou de seu sono leve e adiantou-se para me cumprimentar. Levou-me até sua casa, lanchamos juntos, conversamos durante um tempo, sem que eu notasse nada de estranho nele. Quando já escurecia, ele me contou de sua condição, e eu fiquei espantado: não fosse a confissão dele, eu nunca imaginaria que ele havia perdido a memória. Comecei então a falar-lhe de minhas viagens, e mostrar alguns souvenires que, por acaso, eu trazia na mochila. Ficamos horas conversando agradavelmente sobre várias partes do mundo, até que eu puxei uma pequena estátua encontrada por mim durante uma viagem à Ásia, e ele entrou em uma espécie de choque. Sentindo-me extremamente culpado, fiquei ali na cabana com ele até que o homem acordasse ou alguém aparecesse. Na noite seguinte, eu comia ao seu lado quando o ouvi sussurrar algumas palavras. Virei-me e notei que, lentamente, ele acordava do choque e se mexia, ao mesmo tempo em que um sorriso se formava sobre seu rosto. Ele mexeu os braços, então, e levou as mãos até o peito. Depois, declamou: "Acorda, querido coração, acorda! Tu dormiste bem, acorda!". Acredite ou não, Ferdinando, mas após ver a estátua, o homem havia tido uma espécie de visão que acabou por restaurar sua memória. Sim, é isso mesmo: após tantos anos, ele estava curado, após tantos anos, ele se lembrava de tudo...

Ferdinando ouviu atento a história de Ariel, mas ao fim dela sentia-se um pouco incomodado. Levantou-se de poltrona para arejar a cabeça e pediu um copo d'água ao anfitrião, o qual foi gentilmente concedido. Depois de beber, ele voltou a falar.

- A estranheza da sua história pôs um peso sobre mim...

- Perdoe-me, Ferdinando. Eu ansiava por ouvir a história de sua vida, que deve soar estranhamente ao ouvido, mas para isso acabei exagerando na dramaticidade. Perdoe-me.

- Não se preocupe, Ariel, eu posso contar a minha história, ao menos a parte que eu me lembro, a você...

- Ah sim, obrigado, mas espere! Já é hora do almoço, acompanhe-me que almoçaremos juntos, e então você me conta tudo certo?

- Claro, claro, eu vou com você.

E foram.
.

Nenhum comentário: