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terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 37


Foto: Bruna Pimenta

por Tuma

Silêncio: já não há mais o que dizer. Na mansão Nápoles, a morte de Kaspar Hauser causou reações diversas, mas silenciosas. Nenhum dos três moradores do lugar manifestou seus sentimentos a respeito em voz alta: eles só existiram na mente de cada um, sussurros tão inaudíveis que, pela própria existência, gritavam nos cômodos vazios.

Ferdinando se fechou em suas dúvidas. Ele tinha uma consciência vaga do que fizera, mas as lembranças do que acontecera na noite anterior ao assassinato permaneciam afogadas na névoa. Resolvido a organizar suas poucas memórias, seus muitos delírios e os ecos de seus atos que inundavam sua mente, adotou uma postura quase ascética de calar-se. Ernest, o único que vira Ferdinando naquela manhã do crime, tornara-se ainda mais quieto e sombrio. Nino, um pouco assustado pela perda repentina daquela figura que sempre ilustrara sua vida em Miranda, embora nunca tivessem trocado uma palavra, também acabou enredado em um silêncio reflexivo.

E assim continuou por algum tempo após a morte de Kaspar Hauser, um pacto de silêncio só quebrado pelos depoimentos que os três deram à polícia. No terceiro dia depois do fim do mendigo, porém, aconteceu: o assunto voltou à vida, de modo repentino e conclusivo.

Ferdinando foi até a cozinha, buscar água, e encontrou Ernest ali. O mordomo, de cócoras na porta, fazia carinho no pescoço de um gato preto gordo, como se o gato fosse seu. Ferdinando não se lembrava de ouvir que Ernest tivesse um gato, e durante alguns segundos ficou parado surpreso tentando entender a cena. Antes que pudesse depreender algo, porém, o gato virou os olhos em sua direção, e Ferdinando viu. Gato preto gordo, de olhos profundos, cortantes, fatais. O gato de Kaspar Hauser.

Só então Ernest notou sua presença. Levantou-se com esforço e deixou o gato na soleira, para depois caminhar até um Ferdinando boquiaberto, sem reação.

- Ferdinando, eu já estou velho demais para segredos. – Suas palavras causaram em Ferdinando um sobressalto. Ernest falava com esforço, seu rosto denotava abatimento. Ele estava muito fraco. Ferdinando não respondeu.

- Eu vi você na sala anteontem, e percebi que estava perturbado. Sei que você saiu daqui com o punhal da família, e que só o devolveu quando pensava que ninguém estava olhando. Mas eu vi, Ferdinando, eu vi e eu sei. Eu sei que foi você quem matou Kaspar Hauser.

O Tolo tentou recuar para trás, sua consciência o mandou negar, mas ele não conseguiu articular nenhum som. Ernest agarrou seu braço, como sempre fazia, e o conduziu até uma cadeira. Depois, trouxe um copo d’água para ele.

- Sabe, sinto que posso compartilhar com você algo que nem o patrãozinho sabe... – por um instante minúsculo, quase imperceptível, o mordomo hesitou, mas continuou a falar. – Eu fui o primeiro desmemoriado de Miranda, Ferdinando. Muitos, muitos anos atrás, eu também estava nessa praça sem idéia de como chegara até ali. Morei junto à fonte por um certo tempo, até que a família Nápoles me acolheu. Eram os avós de Antonio. Fui um ótimo mordomo para eles, e para os filhos dele, e para os filhos dos filhos deles, mas foi só isso: nunca soube de onde eu vim, ou meu verdadeiro nome, ou como vim parar aqui.

Sem tirar os olhos do rosto antigo de Ernest, Ferdinando ouvia atento.

- Depois que o avô de Antonio morreu, apareceu um novo amnésico na cidade. Mas, ao contrário de mim, ele chegou aqui fazendo escândalo. Eu estava na rua, conversando com um amigo, quando o homem que você conheceu como Kaspar Hauser apareceu gritando ali na praça e pulou nas águas da fonte. Ele dizia que alguém havia roubado sua mente, e que ele precisava encontrar essa pessoa, e que todos precisavam ajudá-lo. Ninguém reagiu ao showzinho dele, mas eu o ajudei. O acalmei com palavras, o levei até a delegacia, e acompanhei sua vida de morador de rua sem posses nem memórias.

Ernest, que até então permanecera em pé, se sentou.

- A partir daquele dia descobri muitas coisas sobre Miranda, coisas que eu vou te dizer, porque de hoje em diante você vai precisar saber. – ele esticou o braço e mostrou três dedos para Ferdinando. Abaixou o primeiro. – Um: aqui, você recebe o nome que melhor se encaixa. Me chamaram de Ernest pela primeira vez porque parecia um nome trivial o suficiente para um mendigo sem memória, e quando precisei me registrar meu patrão sugeriu Schrödinger, em homenagem a um velho amigo dele com quem eu me parecia. Já o nome de Kaspar Hauser apareceu em sonho para ele um mês depois de ele chegar aqui. Até então o chamávamos de Tolo, por suas palavras muitas vezes desconjuntadas e sem sentido.

Abaixou o segundo dedo.

- Dois: essa cidade é uma porra de um antro para todo tipo de gente louca e criminosa. O que se vê em geral são casais adoráveis e pessoas sorridentes, mas o que está por trás disso tudo é infinitamente pior.

Abaixou o terceiro dedo, cerrando o punho.

- Três: se você quiser sobreviver aqui, e for um louco ou um criminoso, vai ter que fazer algum sacrifício. O gato ali, ele era meu, eu o comprei depois que comecei a trabalhar aqui. Quando Hauser apareceu, porém, eu senti que devia dá-lo a ele, e fiz isso. Eu sacrifiquei a minha posse dele para que um outro louco sem memória pudesse ter onde se apoiar. Quando os pais de Antonio foram assassinados, tive de sacrificar a punição dos culpados para preservar a vida dos filhos deles. Kaspar Hauser sacrificou o pouco de sanidade que lhe restava para preservar sua dignidade, quando... não, isso você não tem o direito de saber.

Ernest falava com raiva, expelindo as palavras como se as cuspisse, e Ferdinando o observava assustado.

- Ferdinando, eu sei que nós, os Sem-Memória, podemos por vezes fazer coisas que mesmo nós não entendemos. Por isso não vou questionar o que o levou a matar Kaspar Hauser. Mas nós dois teremos de fazer um sacrifício, nesse momento. Eu novamente sacrifico a posse do gato: agora ele é seu. E farei ainda mais um sacrifício sobre o qual você saberá em breve. Mas você, pobre Ferdinando, você sacrificará sua liberdade. A partir de hoje é seu dever permanecer ligado a Antonio e ao gato, cuidar deles. E é sua sina perceber toda vez que um sacrifício precisar ser feito, e não ter escolha senão fazê-lo.

O dia sumia debaixo do horizonte e entrava cada vez mais fraco pela janela. O gato observava os dois homens, desde não se sabe quando de pé e encarando um ao outro. Estavam em silêncio, mas o mais baixo e velho o quebrou.

- O resto, para nós dois, será silêncio. Já não há nada mais o que dizer. Ferdinando, adeus, deseje-me bons sonhos.

E assim, Ernest Schrödinger abandonou Ferdinando e a cozinha, sumindo com seu passo veloz em algum cômodo do grande casarão, enquanto seu gato, preto e gordo, mantinha os olhos em seu novo dono.
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Um comentário:

João G. Viana/Pudim disse...

Nossa, a tensão continua crescente, e os capítulos cada vez mais interessantes, e o Ferdinando cada vez mais perdido...quero mais capítulos!