
Foto: Guilherme Carnaúba
por Tuma
A névoa pesada impedia que se visse muito a frente. Ferdinando passeava muito lentamente, tomando cuidado para não escorregar no chão úmido. Caminhava, porém, com decisão. Sabia exatamente a direção que deveria tomar.
A névoa se abria aos poucos, e permitia uma visão fantasmagórica da praça Alonso Nápoles. Estava vazia, nenhum bicho, nenhum homem, ninguém fazia sua jornada diária por ali. Só o que havia era a fonte, majestosa surgindo no meio dos ladrilhos. E, sobre ela, dois seres de matéria, embora Ferdinando não estivesse certo de que eles tinham alma.
Kaspar Hauser e seu gato estavam sentados silenciosos sobre a borda da fonte. Hauser se inclinava sobre a água e deixava seus dedos nadarem por ali, mas seus movimentos eram quase imperceptíveis. Do seu lado, destacando-se do ambiente monocromático, algumas cartas se espalhavam, perigosamente balançando sobre a água.
Ferdinando colocou as duas mãos para trás, escondendo o punhal, e chegou perto do mendigo. Kaspar Hauser virou-se imediatamente, assustado, mas ao ver quem chegara tornou a olhar para a água. Sussurrou algo, que Ferdinando não entendeu e o fez se aproximar. Hauser repetiu.
- As manhãs são tão tristes. – sua voz era quase inaudível. – me fazem lembrar dos jardins de Ansbach...
As mãos de Ferdinando tremiam. A voz do mendigo o paralisava. Aqueles sussurros que escapavam pela boca de Kaspar Hauser impediam qualquer movimento dele. Ele gemeu, e chamou novamente a atenção de Hauser. O mendigo o olhou de cima abaixo e pigarreou, tornando a falar.
- Toda essa névoa, eu a vejo o tempo todo, mas me alegro, porque chegará a noite e talvez tudo deixe de ser. Mas volta a manhã e com ela a consciência, e sou obrigado a lembrar que isso não passará jamais.
Agora, os músculos de Ferdinando já estavam mais relaxados. Aquela paralisia que experimentara alguns momentos antes já se esvaía, e ele podia voltar a respirar normalmente. Kaspar Hauser ainda o encarava. Mas virou o rosto para as cartas que dormiam sobre a borda da fonte, e passou a mão sobre elas, acariciando-as.
- Esses pedaços de papel querem revelar o mistério do mundo – disse, um pouco mais alto que da última vez –, mas eles não podem. Nada pode. Não se pode revelar o mistério da vida, ou desvelar a essência das coisas, ou iluminar o rosto do homem atrás das cortinas. Não se pode fazê-lo, pois não há nenhuma dessas coisas. Não há mistério algum, nem na vida, nem nas histórias, nem em nada. E tudo o que acontece com os homens é um acaso sombrio...
Com um movimento ríspido, o mendigo joga as cartas na água, todas elas, e observa elas se desmancharem lentamente, e afundarem.
- Não há mistério algum...
Ferdinando, já totalmente liberto da paralisia, chega ainda mais perto de Kaspar Hauser, com uma expressão indecifrável. O gato olha para ele assustado, e Hauser se vira lentamente. Ferdinando empurra a cabeça do mendigo com a mão livre, e ele cai na água. Os olhos de Hauser se esbugalham, surpresos, sem entender, e seus lábios tremem. Ferdinando levanta o punhal, e, sem hesitação, o enterra no peito do caído. A esse gesto, os olhos do mendigo se acalmam, e se fecham, e um sorriso leve surge em seu rosto, e ele afunda na água misturada com sangue e cartas de tarô que já toma a fonte toda.
Ferdinando observa aquela figura, e se surpreende. O gato o encara com olhos brilhantes e inquisidores, fatais, e Ferdinando corre e desaparece na névoa.
Mas já não há mais com o que se preocupar. Kaspar Hauser está morto.
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Um comentário:
Assassino! Assassino!
A coisa está ficando cada vez mais tensa...
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