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quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Através do espelho obscuro, capítulo 53


Foto: Bruna Pimenta

por Tuma

Após o almoço, Ariel e Ferdinando voltaram para a sala, onde se sentaram em frente à lareira, novamente, e descansaram, quase dormindo, durante alguns minutos. Haviam comido muito bem, e Ferdinando contara ao anfitrião sobre tudo que acontecera a ele desde que chegara a Miranda. Não pudera lembrar, porém, de alguns detalhes, e excluiu cuidadosamente qualquer menção ao assassinato de Kaspar Hauser. Agora, os dois já estavam calmos e descansados, e puderam continuar a conversa.

- Pois bem, Ferdinando, o que o trouxe até aqui?

- Eu fui enviado por Tito Heisenberg. – a expressão de Ariel não reagiu de maneira nenhuma à menção desse nome.

- Tito Heisenberg? Nunca ouvi falar. E o que esse Tito Heisenberg deseja? – Ferdinando hesitou durante alguns segundos.

- É sobre o The Sandmen. – dessa vez, Ariel sorriu. Fechou os olhos, recostou-se na cadeira, e muito baixo deixava algumas palavras escaparem de seus lábios, como se falasse sozinho.

- The Sandmen, The Sandmen... Um sonho, sem dúvida. Eles eram como espíritos... – algumas palavras Ferdinando não compreendia, mas ficou em silêncio. Algum tempo depois, Ariel abriu os olhos e os voltou para Ferdinando.

- The Sandmen? O que você quer saber sobre eles?

- Tito quer conhecer o segredo da faixa perdida. – respondeu Ferdinando.

- Não, não, não. – interveio Ariel. – Eu perguntei o que você quer saber sobre eles.

- Bem... eu também gostaria de saber isso. – Ariel permaneceu em silêncio, com os olhos grudados em Ferdinando, durante mais um tempo. Então relaxou e começou a falar...

- Essa música ondula junto a mim por sobre as águas... a última música do The Sandmen, a música que o mundo perdeu... bom, antes de tudo eu preciso falar sobre o álbum. Você já ouviu Through a Glass, Darkly, eu presumo?

- Sim, já ouvi sim, várias vezes.

- Bem, então eu vou te contar como ele chegou a ser feito, está bem assim?

- Claro. – respondeu Ferdinando.

- Ótimo. Pois então… muito tempo atrás, Hip e Ike vieram até aqui para mostrar algumas músicas deles. Eu estava muito ocupado na época, então pretendia ouvir um pouco e já dispensá-los: para fora ou para algum produtor. Desde o primeiro acorde, no entanto, eles me fascinaram. Os dois, tocando sozinhos, pois os outros irmãos trabalhavam e não podiam vir até a gravadora, com somente uma guitarra, uma bateria e um microfone, conseguiram agradar meus ouvidos. Resolvi ficar com eles pelo resto da tarde, escutando o que eles tinham. Era só um bando de covers, mas eu fiquei maravilhado, e pedi para eles trazerem algo próprio na próxima vez.

- Sim, eu já tinha ouvido essa parte.

- Certo, pois então. Na próxima vez a banda veio completa, e tocou uma música deles. Após ouvir a primeira vez, mandei pararem todas as gravações e chamei os produtores que estavam no prédio para ouvir aquilo. Todos ficaram espantados. Quando o disco saiu, estourou, vendia muito, e os shows deles eram sublimes, apoteóticos... infelizmente, foram poucos. Eles se apresentaram seis vezes e depois sumiram da face da terra. Só fui encontrá-los anos depois, mortos e enterrados. Nunca ficou esclarecido porque eles haviam sumido daquele jeito. As últimas pessoas que estiveram com eles disseram que eles pareciam normais. Eu, porém, tenho uma espécie de teoria.

Antes de continuar, Ariel se levantou e foi até a janela. Abriu um pouco mais as cortinas e deixou entrar mais luz natural no ambiente. Quando ele voltou, disse:

- Já começou a chover, ouve os pingos?

- Sim...

- Eu adoro o cheiro da chuva.

- Eu também.

- Bom, Ferdinando, preste bem atenção agora. – o rosto de Ariel ficara sério. – O que eu vou te contar foi presenciado por muito poucas pessoas. Eu, junto com um produtor, que já morreu há muitos anos, fomos os únicos a acompanhar de perto todo o processo de gravação do Through a Glass, Darkly, donde se conclui que eu sou a única pessoa viva que conhece a história. Você, a partir de agora, ficará conhecendo-a também. Quero deixar bem claro que isso não é nenhuma espécie de segredo, mas que tipo de uso você fará dessa história é problema seu, certo?

- Certo.

- Vamos lá então. O The Sandmen pretendia fazer uma espécie de épico sobre os sonhos, sobre a ilusão, sobre o mito. A idéia deles era retratar com a música a mente de alguém que mergulha nessa mistura de sonho e fantasia, vive uma história de dramas e alegrias, e ao final descobre a verdade sobre tudo. Assim, eles foram compondo as músicas baseados nessa espécie de enredo. Elas eram dez. A primeira, Good Night, Good Dreams, era como os últimos suspiros e pensamentos de alguém ao adormecer. A segunda, Sunrise, representava um despertar estranho, dentro do próprio sonho, onde tudo é parecido com a realidade, só que mais estranho, mais exagerado, mais delineado. A terceira, Mister Sandman, cover da música clássica, foi colocada no álbum como uma espécie de coisa familiar para se agarrar, mas mesmo essa familiaridade contém uma certa estranheza.

- Interessante, eu nunca havia pensado nas faixas desse modo.

- Bom, a concepção deles para a coisa toda era bem abstrata, então mesmo nas letras não havia uma indicação muito clara do que estava acontecendo, o que só se agrava a medida que o disco progride. A quarta faixa, Anywhere, tinha o objetivo de transmitir uma sensação muito forte de estranhamento, mais do que as anteriores faziam. A quinta faixa, Fields of Afternoon, era uma espécie de descanso, de trégua para o que estava por vir, como uma sesta depois de um almoço pesado e antes de uma tarde ocupada. A sexta canção, Mirrored, era também a mais estranha de todas. Ela mostrava uma espécie de encontro do eu-lírico da letra com seu nêmesis, seu duplo, uma espécie de "gêmeo do mal" dele. Já a sétima, Darkness Falls, era muito tensa, e tinha o intuito de mostrar que, quando as coisas já estão bastante ruins, elas podem piorar ainda mais. Ela era o extremo do extremo de um pesadelo. A oitava, por sua vez, Cry, era insuportavelmente triste, um lamento longo, pesado, soturno, por todas as coisas perdidas. E a nona, finalmente, Over the Stars, representava a última jornada para além do sonho, a última etapa da travessia entre o dormir e o despertar, o último passo necessário para se dar a fim de sair de todo aquele simulacro em que se estava vivendo.

Ferdinando olhava para Ariel espantado.

- Isso tudo que você me disse é espantoso. Eu nunca mais vou escutar aquele álbum da mesma maneira... Mas, e a décima música, a última? E quanto à faixa perdida?

- Ah... sim. Quando o álbum saiu, os mais sensíveis notaram que ele parecia acabar abruptamente, como se faltasse alguma coisa, como se a jornada não estivesse completa. Com o disco, se entrava no sonho e se o percorria, até o quase-fim, mas não se saía dele por completo, não se descobria o seu sentido. Isso, de fato, não acontecia, pois faltava alguma coisa. Faltava a última faixa.

Ferdinando quase prendeu a respiração. Ariel ficou em silêncio por um minuto recuperando o fôlego, e então revelou a Ferdinando todo o segredo.

- Eu vou te falar sobre a última faixa...
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