Foto: Guilherme Carnaúba
por Tuma
A vida de Ferdinando tornara-se um constante repetir da rotina. Dia após dia, ele ia ao trabalho, trabalhava, e de lá voltava, quieto e cansado, para tomar um banho, jantar, dar comida para o gato e dormir. Raramente conversava com alguém fora do horário de serviço. No máximo ligava a televisão e ouvia o noticiário ou telefonava para algum restaurante pra pedir pizza. Também passava longos minutos encarando o gato, até sua atenção ser desviada pela tevê. Geralmente, dormia rápido. Às vezes, porém, ficava a noite inteira acordado, pensando em onde estaria Nino e se algum dia ele se lembraria de quem era.
Um sonho freqüente perturbava seus pensamentos: ele, no corpo de um garoto, perseguindo um trio de pessoas. Era sempre a mesma situação, embora em cenários diferentes: uma mulher triste indo atrás de um homem e uma garotinha, e de repente desaparecendo sem deixar pistas. Ele, ou o garoto, então, continuava a ir atrás do homem e da menina, até que eles sumissem em algum tipo de ilha ou lugar inacessível. Ferdinando freqüentemente passava o dia pensando nesse sonho, mas nada além de perplexidade vinha à sua mente.
Num desses dias de sua nova vida, não se sabe qual, posto que eram todos iguais, Ferdinando recebeu uma visita. O mercadinho estava vazio, e ele quase cochilava em uma cadeira, quando ouviu passos ecoando no recinto. Eles eram constantes e cadenciados, como uma marcha, e logo Ferdinando enxergou quem os dava.
Um homem baixo, grisalho e enrugado, vestindo um terno elegante, se aproximava dele. Suas pernas, mesmo quando andava, permaneciam um pouco afastadas, e seu tronco se projetava à frente, deixando os braços pendurados, o que lhe dava um aspecto animalesco. Ferdinando logo reconheceu quem ele era: Tito Heisenberg, o magnata que, diziam as línguas, mandava na cidade.
O velho passou por ele e, com um sinal, o chamou para ir até a sala do dono no mercadinho, atrás do setor de congelados. Ferdinando o seguiu até a sala vazia e encontrou o homem em pé no canto, indicando-lhe uma cadeira vazia em frente à mesa de seu patrão.
- Sente-se. - ele disse. Ferdinando sentou. - Creio que você me conhece? – Ferdinando confirmou com a cabeça. – Bom. – continuou o homem. Ele próprio, então, seguiu até uma outra cadeira, geralmente usada pelo dono do lugar, e sentou-se lá. Uniu as mãos sobre a mesa, aproximou a cadeira e, olhando no fundo dos olhos de Ferdinando, direta e impassivelmente, voltou a falar.
- Ferdinando, tenho algumas coisas muito importantes a te dizer.
- O senhor pode falar, desde que seja breve, não posso deixar a loja sozinha.
- Não se preocupe com isso. – respondeu o homem com um sorriso, que logo sumiu de sua face. – Ninguém entrará lá enquanto estivermos aqui.
Ferdinando ficou incomodado. Sem demonstrar ter tomado nota disso, Tito continuou.
- Como você deve saber, sou conhecido em Miranda como “chefe”, ou alguma outra alcunha que os cidadãos dessa bela cidade insistem em me dar.
- Já ouvi falar disso sim...
- Um outro nome pelo qual eles me chamam é “pai”, e eu te digo, Ferdinando, - ele parecia exagerar na grandiloqüência ao falar o nome de Ferdinando, como se o proclamasse ironicamente. – eu sou um pai generoso.
- Não tenho dúvidas disso... Senhor.
- Ótimo. Por isso vim então hoje dar-lhe as boas vindas oficiais à Miranda, em nome de todos os seus cidadãos.
- Mas por que só agora? – perguntou Ferdinando, impulsivamente. Tito mais uma vez sorriu numa fração de segundo.
- Talvez seja porque você não é exatamente uma personalidade ilustre para receber as boas vindas logo que chega, ou talvez seja por outro motivo. Você não precisa saber. O que você tem de saber, Ferdinando – mais uma vez aquele tom. -, é que eu, como Pai, sou muito consciencioso da vida de meus filhos e de meus deveres como pai...
Súbito, o homem socou a mesa e apontou para Ferdinando, enquanto sua boca se contorcia para proferir as últimas palavras.
- Eu conheço seus segredos, homem, todos eles. E seus desejos e seus medos. Um dia eu vou te pedir um favor, e você vai fazê-lo para mim ou – agora, ele faz um gesto com as mãos, como se amassasse uma folha de papel. – eu vou esmagar tudo isso, de uma só vez.
Ferdinando ficou sem reação. Não sabia se respondia, se brigava, ou se simplesmente levantava e ia embora. Preferiu ficar parado e em silêncio, enquanto Tito se levanta, recompondo-se, e com um gesto se despedia e ia embora.
Naquela noite, ao voltar para casa, Ferdinando olhou para trás constantemente, com medo de estar sendo perseguido. Fugia de cada trecho escuro e a cada segundo caminhava mais rápido. Quando chegou em casa, fechou a porta bem rápido, trancou as janelas, e passou o resto da noite acordado agarrado ao gato, com todas as luzes acesas e a tevê gritando bem alto para espantar os demônios, os fantasmas e as sombras.
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Um comentário:
Não preciso dizer que a história está cada vez mais envolvente, né?
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