Foto: Guilherme Carnaúba
por Tuma
Um rosto que observa, soturno. Uma máscara retorcida num esgar de riso e fúria. De começo um ponto luminoso no fim do escuro, que se aproxima e cresce, pouco a pouco, e pára, flutuante, assustador, impiedoso, à exata distância em que se pode ver.
Ferdinando chorara por Nino, e sua mulher o seguira na tristeza. Em poucos dias, porém, a amargura foi tomada pela apatia. A morte ou vida de Nino já não lhe importava. Só o que o assombrava era a permanente acusação pesando sobre seus ombros, o peso do fracasso.
Num dia em que a mulher não iria até o mercado, Ferdinando seguiu sozinho até o local de trabalho, disposto a se cansar o suficiente para chegar em casa à noite e dormir imediatamente. Quando alcançou a rua do armazém, notou um carro preto elegante parado em frente ao estabelecimento, e curioso apertou o passo.
Perto da porta, um homem grande de terno o esperava. Ele trabalhava para o senhor Tito Heisenberg, e tinha ordens de levar Ferdinando ao Chefe. Ferdinando tentou protestar, dizendo que precisava trabalhar, mas o homem disse que a conversa com o Chefe era mais importante.
Resignado, Ferdinando entrou no carro e seguiu por Miranda, atravessando-a quase inteira para chegar à propriedade de Tito. A casa do Chefe ficava em um grande terreno arborizado, e parecia ser muito antiga. Para aliviar a tensão, Ferdinando comentou esse fato ao ser introduzido no aposento em que Tito se encontrava. O Chefe riu-se e respondeu que sim, a casa era muito antiga. Mas logo desviou-se desses circunlóquios e disse por que trouxera Ferdinando até ali.
- Ferdinando – o tom com que ele dizia seu nome sempre o incomodava -, eu preciso de um outro favor seu, um favor que é muito maior do que qualquer um que eu já te pedi.
De fato, Ferdinando já fizera favores para o Chefe, três ou quatro, mas tratava-se sempre de fornecer alimento para as festas que o magnata dava ou, como aconteceu uma vez, fazer contato com uma transportadora de mercadorias.
- Diga, senhor, se eu puder farei o que pedir.
- Se você puder não, Ferdinando, você vai fazer esse favor independente de qualquer coisa.
Ferdinando não respondeu.
- Você conhece uma banda chamada The Sandmen?
A imagem de um disco, dentro de uma caixa, dentro de um armário, esquecido pelos anos e pelo pó, veio à mente de Ferdinando.
- Sim, conheço.
- Então deve saber que existe uma história, a respeito de uma suposta "faixa desaparecida" que não teria entrado no único disco deles e então desapareceu. Eu nunca dei trela para esse tipo de teoria conspiratória aqui em Miranda, mas ao mesmo tempo sempre fui corroído pela curiosidade de conhecer a história dessa música e de ouvi-la.
Tito parecia fazer um discurso para si próprio, como se ignorasse que Ferdinando o ouvia.
- Infelizmente, eu nunca havia tido sucesso em descobrir nada sobre isso. O prédio da gravadora Caliban em Prospera ficou fechado por décadas... mas, poucos dias atrás, o antigo dono da gravadora, que produziu os discos do The Sandmen, voltou para casa.
- Mas onde ele estava esse tempo todo?
- Não sei, ninguém sabe! Minhas investigações foram inúteis, ele desapareceu da face da Terra e só agora voltou a dar as caras.
- Parece interessante senhor, mas o que eu tenho a ver com isso?
- O que você tem a ver com isso, meu caro Ferdinando?
Tito, que até então estivera sentado em sua poltrona, levantou e foi até o convidado.
- Você vai até Prospera, até a sede da gravadora Caliban, conversar com Ariel e descobrir qual foi o fim da faixa perdida!
- O quê? Mas porque eu? Quem é Ariel?
Tito, que até então parecia mais alegre do que Ferdinando jamais o vira, tornou-se de repente sério e sombrio.
- Você gosta demais de perguntas, Ferdinando. Ariel obviamente é o dono da Caliban. E é você obviamente que vai até lá porque obviamente ele só vai revelar o segredo para você!
- Mas...
- Mas o inferno, seu idiota! Se você não lembra nem mesmo de quem é não posso esperar que entenda meus motivos! – Tito começou a se afastar enquanto esbravejava. Deu as costas para Ferdinando e começou a subir a escadaria que levava até o segundo andar. – Amanhã de manhã você parte para Prospera, o homem que o trouxe até aqui te dará o endereço da gravadora. E se até o pôr-do-sol você não tiver chegado até aqui eu saberei que você me traiu e as conseqüências...
As últimas palavras do magnata insano foram engolidas por uma porta se fechando atrás dele. Ferdinando ficou durante algum tempo sozinho na sala, até que o funcionário de Tito veio buscá-lo e o levou embora. Chegou ao mercadinho perto da hora do almoço, e o encontrou aberto e funcionando. Seus funcionários não perguntaram onde ele havia estado, e na verdade nem pareciam ter notado sua ausência. Sem falar com ninguém, Ferdinando atravessou quase correndo o ambiente e trancou-se em sua sala pelo resto da tarde.
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Um comentário:
Vamos lá, que comece a busca!
[Ferdinando só sofre]
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