por Pudim
Prólogo – Vacinação (0/10)
Da banqueta de espera, Nikole observava mais um filho recuar diante do palitinho agudo ameaçador decidido a ferir-lhe a pele, abrindo caminho para as vias sangüíneas, onde lançaria a cura para a doença aguda ameaçadora que compensava aquela angústia. Aprumou-se e consolou o lamentoso descendente, que concordou em receber a infusão ali, retraído no abraço da mãe. Então tornou ao assento e à sua languidez entediada, incompatível com o dia esperançoso e agitado em Windhoek. E o ritual se repetiu por seis vezes.
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“Vamos, Boris, antes que as filas fiquem longas demais.”
“As filas já estão longas demais. Sempre estão longas demais. Senão não são filas.”
“Que jeito estranho de dizer ‘não estou a fim’. Eu estou indo, não vá deixar para a última hora.”
“Você vai dirigir? Não acabou de beber uísque?”
“O posto é aqui perto, vou a pé.”
“Não demore.”
Assim, com um ligeiro beijo e um aceno desanimado antes de fechar a porta, Boris Norton escapou da infecção aterrorizante que afligiria toda a Terra e especialmente sua esposa nas semanas seguintes.
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Alice rabiscava habilmente suas idéias mais inovadoras num caderno amarrotado miserável, o ombro recostado no de Érica. Esta assistia habilmente às notícias mais inovadoras da CNN International, na verdade praticando seu inglês.
“Será que com essa história de cura para AIDS a ajuda internacional para a África vai continuar?”
“Quê?”, a desenhista disfarçou instintivamente a indiferença com a língua entre os dentes.
“Veja só, o inventor da vacina da AIDS vai tomar a injeção em rede internacional. Não acredito que estou contribuindo com minha audiência para um programa assim”, resmungou, desligando o aparelho e voltando-se para a amiga. Alice, notando a admiração que o esboço concentrava, lançou o caderno em rodopios sobre a cama.
“Meu projeto para a exposição. Vai se chamar ‘Érica’
Ela sorriu.
“Mas que honra. Você vai ao posto agora?”
“Eu vou, você fica; estou esperando minha mãe ligar aqui pra vir me buscar, mas não posso voltar para casa sem a cura milagrosa. Tudo bem?”
Érica demonstrou compreensão com um aceno.
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Durante a travessia de uma avenida das mais apinhadas de Windhoek, Nikole, que até então manejava com certo controle a prole, não conseguia fazer uma das crianças se mover. Impaciente, berrou o nome do filho, e sua voz se sobressaiu às buzinas, vozes e motores ruidosos. O garoto reagiu com agressividade atípica – abocanhou o braço da mãe decididamente, a ponto de espalhar algumas marcas de sangue na roupa dos dois. Foi logo correspondido com um murro violento na bochecha esquerda, e se acalmou. Nikole não teve tempo, no entanto, de fazer o mesmo ao restante das crianças. Apenas apreciava com desespero o espetáculo frenético de cinco pequenos meninos se arrebentando, atirando amostras de sangue estranhamente rosado sobre o asfalto cheio de marcas de recapeamento.
E o semáforo abriu e os carros buzinaram e Nikole não se moveu e os carros avançaram e as pessoas gritaram e os garotos morriam. E a mãe fugiu dos filhos.
Não tinha a noção de que muitas pessoas, em diversos lugares, viviam experiências notavelmente semelhantes.
Foto: Bruna Pimenta
Um comentário:
Grande! Finalmente uma nova história sua. Apesar dos "probleminhas" com o enredo que a gente já conversou, está magnificamente escrito, especialmente os dois primeiros trechos.
Muito bom, continue!
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