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quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Pernas e poemas.

por Stefano Manzolli.

Naquela tarde, como em todas as outras desde que minha irmã fez quatro anos, fui levá-la ao ballet. Meninos que já assistiram a uma aula de ballet sabem como é chato: elas levantam a perna, abaixam; erguem o braço, abaixam; primeira, segunda, terceira, quarta, nonagésima posição; e todas, numa sincronia quase perfeita, executam dezenas de passos, presas num colan rosa encharcado de suor. Para mim, não há graça nenhuma em ver o Lago dos Cisnes, o Quebra-Nozes, ou simplesmente escutar as músicas clássicas irritantes.
Até aquela tarde, não havia graça nenhuma.
Mas naquela tarde, mudei a minha forma de pensar.
Entendi o que era a vida e a beleza patética do amor.
Quando chegamos na academia de dança Lima Penteado, percebi um clima estranho entre as garotas. Havia um murmurinho, uma fofoca passando de voz em voz, de mão em mão. Umas arregalavam os olhos, outras desmanchavam em rir e eu, todo confuso, me sentia totalmente perdido. Pedi para minha irmã descobrir o que estava acontecendo, mas ela já sabia há muito tempo.
- Hoje vai ter seleção pra passar de nível! Achei que você não gostaria de saber disso. Você não vive resmungando que não gosta quando eu falo do ballet?
Incrivelmente, toda vez que eu perguntava alguma coisa sobre a maldita dança para ela, a resposta vinha da mesma forma: com um sorriso sarcástico, voz petulante e um brilho quase maléfico nos olhos. Lá no fundo ela morria de rir, quando eu me mordia todo, por causa da malcriação velada dela.
- Não me importo, só não queria ficar curioso. Vai pra sua aula!
Aos pulos, como de costume, minha irmã juntou-se ao grupo de pequenas dançarinas e foram praticar. Como não há muita coisa para fazer, geralmente, sento do lado de fora, perto da parede de vidro e fico admirando como ela dança mal. Sem dúvidas, para mim, ela é a pior de todas – desengonçada e fora do ritmo -, mas sua professora já veio elogiá-la diversas vezes.
Eu rio e digo que ela está enganada.
Ela ri e diz que eu não entendo nada de dança.
Minha irmã ri da minha cara vermelha.
De repente, depois do longo aquecimento, entram na sala uma pianista, uma mulher com cara de pêra estragada e... Afrodite – poderia dizer que ela era tão linda quanto Gabriela Cravo e Canela misturada com Iracema, mas sem o clima de floresta ou sertão. Era uma deusa encarnada, com suas pernas e braços esguios, cabelos presos impecavelmente num penteado clássico, os olhos grandes e negros (dignos de Capitu), os lábios grossos e num tom suculento de vermelho. O colan servia-lhe perfeitamente, cheguei a visioná-la nua, ali na minha frente, conversando com aquelas menininhas e minha irmã.
Minha vontade era de invadir a sala e, num ato quase animal, tê-la em meus braços, junto aos meus beiços, colada no meu corpo, suas pernas entrelaçadas às minhas. Pela primeira vez, encontrei graça e beleza naquela dança.
Em cada movimento seu, via desaparecer fragmentos da minha razão. Quase entorpecido, pensava com o coração e tinha na mente um turbilhão de obscenidades. Falando francamente, garotos apaixonam-se de duas formas bem distintas: com amor somente e sem amor algum. No primeiro, sentimos um suadouro, um bambear de pernas, uma espontaneidade em falar “amo você”, nos preocupamos muito com a roupa, o perfume, o cabelo, a fim de estar perfeito para a amante de sua vida. Já no outro caso, não sentimos nada além de um borbulhar gostoso dentro da calça e uma sensação interessante de superioridade.
Sentia-me o galã da novela.
Meu coração bombeava mais sangue.
E eu só tinha quatorze anos.
Aquela aula pareceu voar diante dos meus olhos – em poucos instantes, segurava a mão da minha irmã, enquanto atravessávamos a rua. Ela me cutucava, mas eu não respondia, ainda estava em êxtase, desenhando nas nuvens as coxas grossas daquela bailarina.
- Fernando, você tá quieto hoje. Tá bravo?
Antes estivesse bravo, pois assim descontaria nela. Na situação em que me encontrava, minha irmã não podia me auxiliar em nada.
Ou podia.
- Carol, aquela moça que deu aula pra vocês é nova?
- É a Clarice. Não é professora, não. Só veio auxiliar na escolha das melhores da turma. Acho que passei!
Como assim? Ela não voltaria mais? Quis correr de volta para a academia, tentar falar com ela, pelo menos um beijo... Não dava mais tempo, àquela hora já deveria estar bem longe.
- Ela não vai voltar mais, então?
Minha irmã, que não é boba, entendeu as minhas intenções e riu-se toda.
- Você tá apaixonado, Nando? Tá apaixonado! Tá apaixonado!
- Fica quieta, menina.
Mas ela não parava de cantar, saltitar e parecer irritantemente feliz, enquanto eu estava todo dilacerado.
Quando chegamos em casa, deitei folgado no sofá da sala – sonhando acordado.
- Mamãe, eu acho que passei! A moça me elogiou muito e o Nando tá todo apaixonado por ela! Tá apaixonado! Tá apaixonado!
Elas deram gargalhadas, as quais pareciam martelar minha cabeça. Queria dizer que, na verdade, não queria amá-la... bom, elas não iriam entender mesmo.
- Viu, Nando, se você quiser saber, a Clarice vai voltar amanhã, para falar o resultado.
Pronto, a vida estava cheia de cores e risos novamente! Ela iria voltar! Ainda haveria uma chance de fazer contato, mas eu pensava no que dizer em outra hora. Estava muito atarefado criando cenas e sombras – nossas na parede do quarto. Naquela noite, com certeza, haveria uma trilha sonora diferente durante os meus sonhos, porque eu queria sonhar uma montagem inteira, na qual haveria lugar apenas para nós dois.
Eu era o Senhor de todos os Engenhos.
Eu era o Bonitão da Bala Chita.
Eu era o Rei da Babilônia.
Eu era, eu era tudo.
E ela era minha.
Naquela noite, debaixo das cobertas, abraçado ao travesseiro, ela era minha. Não preciso dizer que não consegui dormi nenhuma hora inteira. Varei a madrugada, mergulhado em diálogos, canções, jeitos bacanas de me apresentar.
Decidi escrever um poema, decidi ser poeta.
Tranquei a porta do quarto, acendi o abajur, arranquei uma folha do meu caderno e... as palavras fugiam. É incrível como frases sempre voam de nossas mãos, quando mais precisamos delas. O Fernando Pessoa, o Camões, o Drummond, que havia encontrado em mim, desmancharam-se como poeira em águas agitadas.
Joguei uma, duas, três, quatro, noventa folhas.
E, depois de tantos rascunhos, escrevi o melhor poema de todos.
Apaguei sobre a folha, com a luz ligada e o lápis do lado.
O outro dia era um sábado. Para minha felicidade, minha irmã precisava ir de manhã para a academia. Para não me render ao amor platônico, decidi não me preocupar com perfume, penteado e banho quente - fui com olheiras e chinelos levá-la. Estava crente de que tudo isso seria tirado mais tarde, então quanto menos roupa melhor. Logo no portão, pude avistá-la, dessa vez usava uma roupa larga, parecendo uma grávida. Antes mesmo de ela entrar no vestiário para trocar-se, larguei da mão da minha irmã e corri ao seu alcance.
- Clarice, espera!
Ela assustou, me olhou e não reconheceu.
Cheguei cansado, fitei seus olhos.
Minhas pernas tremeram.
Meu coração pulsava forte.
Senti um suadouro tremendo.
Quis falar alguma coisa, mas não consegui.
Entreguei a folha e sai correndo.
Quando abriu o bilhete, descobriu linhas e linhas vazias. O melhor poema de todos estava gravado na minha língua, na minha alma, sabia-o de cor. Não esperava, na hora, agir como um apaixonado patético.
Naquela tarde, diferente de todas as outras desde que minha irmã fez quatro anos, eu descobri a pior das coisas: garotos e garotas apaixonam-se da mesma forma.

Imagem por Bruna Pimenta.

6 comentários:

ﯜǿҜєЯร™.Lucas.. disse...

Mel Dels. Ti fofo!

Belo texto, como todos aqui. =D

João G. Viana/Pudim disse...

Bravo! Incrível!
(Aplausos)

Unknown disse...

Nossa moreno tropicano, você se superou dessa vez. Ficou muito bom. Amei.

Anônimo disse...

Muito bom!
Seus textos estão muito bons mesmo.....
Adorei os dois

Anônimo disse...

Definição para esse texto: foda!
parabens mesmo! =O

Naty U.

Unknown disse...

Muito bom, um dos melhores textos que já li na minha vida... (quem sabe o melhor)