
Foto: Bruna Pimenta
por Tuma
Empurro o corpanzil do mendigo para longe e me levanto, mas ele começa a dançar em volta de mim, me rodeando com seus farrapos e falando sem parar coisas incompreensíveis. Consegue me arrastar de novo para perto da fonte, e finalmente descubro o que ele levava nas mãos. É um baralho, cartas de tarô. Tão típico. Ele as espalha sobre a borda da fonte e com gestos teatrais vomita sobre mim suas palavras.
- Tolo, ó Tolo, ó Louco e pequeno homenzinho sem vida! Vamos ver o que as cartas lhe reservam! Veja o que temos aqui, seu primeiro encontro é com O Mago, aquele que seria, portanto, eu! O segundo, vejamos, é com A Sacerdotisa, que pode ser muito bem aquele órfão riquinho afeminado, o que nos deixa com A Imperatriz, há!, eu diria que o pobre velho Ernest se encaixa muito bem nesse papel! – maldita gritaria, ele fica pulando ao meu redor e cuspindo suas palavras na minha cara – Os próximos, ah, que coincidência, O Imperador e O Papa, as duas mãos direitas do Poder, entrando encapotados, inspetores ponto e vírgula, totalmente perdidos em sua missão e seus mistérios! – ele se acalma um instante de seu delírio, e traz o rosto ainda mais perto, para sussurrar.
- Do presente, falaremos agora, querido, Os Enamorados, olhe ao redor quantos casais apaixonados, e eu e o velho gato aqui. O Carro, hm, é o veículo que o trouxe até aqui, e A Justiça é o seu destino, decidido na Roda da Fortuna e que será solto sobre você por mim, O Eremita, O Enforcado, O Diabo! HAHAHA. – como as pessoas da praça ainda não notaram o espetáculo do mendigo maldito? A todo instante tento me desvencilhar de seus movimentos, de seus apertos, de seus abraços, mas eu não posso. Ele é muito rápido, muito esperto, ele me rodeia e rodeia e rodeia. Finalmente, porém, ele pára.
- Mas não – a respiração ofegante, o rosto contorcido, a voz ainda histérica – não, meu Tolinho, não. Você não chegará até O Mundo, não! Você pode ser O Tolo, O Louco, mas não, você não terá jornada, você não vai até o fim, porque não existe fim. Sua vida é um ciclo, Tolo, a vida é um ciclo. A vida é um eterno repetir-se de tudo e todos até a exaustão! Você não vai percorrer caminho algum, porque não há caminho!, seu caminho está em ruínas, suas pernas estão cansadas, seus passos foram apagados e suas lembranças viraram pó!
Ele grita tão forte nos meus ouvidos, tão forte, eu quase caio na água, mas me levanto furioso, finalmente alguma reação, e agarro seus farrapos, e o levanto do chão, e envolvo seu pescoço em minhas mãos tentando estrangulá-lo.
- Morra maldito! – as palavras saem de minha boca sem que eu as tenha proferido. – Morra!
Mas só o que ele faz é rir, rir sarcástica, freneticamente, e segurar minhas mãos para que eu não aperte demais seu pescoço. Percebo que não entendo como cheguei a estar naquela posição, relaxo o aperto, e ele escorrega de minhas mãos, e volta a rir.
- É inútil, pobre Tolo, você não pode fazer nada. – ele limpa o sangue que escorre no canto de sua boca, ele ri seco – Você não pode fazer nada, não pode me tirar a vida, pois eu escondi meu coração no bico do filhote de um pássaro, no fihote, no ovo, dentro do pássaro, e esse pássaro só pousa na terra a cada cem anos! – ele respira de uma só vez, muito, longamente – E a última vez que ele pousou, sabe quando foi? Ontem! – e torna a rir, e meus ouvidos começam a zunir, e o mundo volta a girar.
- Olhe para mim, Tolo, veja o que você pode fazer comigo. – Ele segura em suas mãos uma carta, a de número treze, e enquanto ele a ergue posso ver escrito no papel manchado: A Morte. O mendigo desvairado rasga a carta diante de meus olhos, e pára de rir, e sua face é tomada por uma expressão séria. – A Morte não pode me pegar, Tolo, ela não pode, veja o que eu farei com ela se ela chegar perto...
Mas quase já não ouço mais, estou correndo para longe dali, de volta para casa, em tempo suficiente de abrir a porta e num estrondo cair no chão sem enxergar mais nada.
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Um comentário:
Oh não, cada vez tenho mais medo de Miranda...
Vamos, quero mais "Através do espelho obscuro"!
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